“Flash crash” do mercado de “Treasuries” – Interpretação, perspetivas e implicações interativos;

“Flash crash” do mercado de “Treasuries” – Interpretação, perspetivas e implicações interativos
Na entrada de 2021, ressalvámos que um dos principais fatores para a evolução dos ativos de risco prendia-se com a perspetiva sobre como evoluiriam as taxas de juro sem risco nos EUA – representam uma âncora quintessencial para a avaliação do preço dos ativos financeiros e um barómetro para a tomada de risco.
Na última semana de Fevereiro, a subida das taxas de juro nos EUA acentuou-se de forma dramática e sem surpresa causou um efeito assimétrico sobre o preço das diferentes classes de ativos. Em seguida, procuramos interpretar os motivos que despoletaram este evento, bem como perceber com maior granularidade o efeito que se observou na curva de dívida norte-americana e inferir aquilo que nos parece ser o cenário base para a evolução das taxas de juro vs. ativos de risco e inflação no médio prazo.
Comecemos pelo fim, isto é, a temática que concerne à evolução da inflação no médio prazo. Na semana que coincidiu com a votação do plano de estímulos fiscais de Joe Biden (1900 mil mn) no Congresso, o presidente da FED – Jerome Powell – salientou que a subida das taxas de juro reflecte a melhoria do outlook económico com a perspectiva da estabilização pandémica, desvalorizando assim os riscos inflacionários e aludindo que o efeito da pressão sobre o nível de preços revestir-se-á de uma natureza essencialmente temporária face a comparáveis homólogos muito deprimidos (p.ex.º commodities), mantendo-se uma folga razoável na capacidade produtiva e que o mercado laboral precisa de confirmar os sinais de recuperação que se deverão estender para “dentro de 2022”. Apesar da argumentação lógica de Powell, com a qual concordo a diferentes níveis, alguns dos economistas mais influentes e a comunidade de investidores parecem algo cética na assunção de que o “génio da inflação” irá permanecer estrutural e de forma duradoura contido na lâmpada, tendo em conta a dinâmica recente da atividade económica face ao valor nuclear de mais um plano fiscal da Administração norte-americana.
O recente e mediático debate promovido pela Universidade de Princeton que envolveu Larry Summers e Paul Krugman cristaliza as opiniões fraturantes no que repeita à inflação. O primeiro advoga a existência de riscos inflacionários que resultam da dimensão do pacote fiscal de 1900 mil mn – traduz um valor 4x superior à compressão do output gap (um género de hiato do PIB) da economia americana no caso de esta estar a funcionar próximo do seu potencial – e que poderá descarrilar o ciclo de recuperação caso se concretize a visão de que o FED estará muito “atrás da curva” e ficará tendencialmente obrigada a uma resposta monetária mais forte no médio prazo. Em oposição, Krugman desvaloriza as ramificações entre o nível de output gap e a inflação, considerando que o efeito multiplicador do plano de Biden no consumo agregado é relativamente baixo (<0,5x), tendo em conta que uma parte substancial do plano é destinado ao esforço de luta pandémica e à reposição de rendimento perdido, sendo que a componente mais inflacionária reside nos cheques do Governo, no valor de USD 1400, mas mesmo aqui um valor substancial será destinado a poupança e não a consumo face à natureza excecional deste rendimento. Na nossa opinião, a economia americana encontra-se num estágio desinflacionário nos últimos 20-30 anos e consideramos que o choque induzido pelo coronavírus não deverá impor uma alteração estrutural nesta dinâmica, para além de efeitos temporários da subida do nível de preços face a comparáveis deprimidos e de algumas restrições actuais ao nível da Oferta de serviços/produtos que deverão desvanecer-se no tempo – Reflação é diferente de Inflação. Os factores estruturais desinflacionários persistem, nomeadamente a globalização (regionalização das cadeias de valor ficou aquém do esperado no pós-Covid), a primazia do capital sobre o trabalho apenas ganhou mais força no período recente e subsiste uma folga relevante no mercado de trabalho num contexto em que as Philips Curves se encontram distorcidas. No último quarto de século, a métrica preferencial do FED para medir a inflação (PCE) apenas esteve estruturalmente acima de 2% entre 2005-07, ainda que no médio prazo não descartemos a possibilidade de o nível de preços ficar um pouco acima daquilo de que as últimas gerações estão habituadas, ainda para mais com a abordagem mais tolerante à inflação da FED em paralelo com a “grande política fiscal” experimental de Biden. É caso para os responsáveis de Governo e do FED terem algum cuidado com o alcance das suas medidas, mas os riscos de hiperinflação, à imagem dos anos 80, parecem estar a mais de uma galáxia de distância que nem o próprio brilhantismo da “Perseverance” poderá alcançar!
Além da melhoria do outlook económico e do pick-up dos riscos inflacionistas que abordámos anteriormente, o trigger que acabou por levar ao sell-off de pânico da dívida americana na sessão de 25/Fev. resultou de condições muito negativas associadas a um leilão de dívida do Tesouro com maturidade a 7 anos. Este evento motivou um flash crash das treasuries, cuja yield subiu 25 p.b. na própria sessão até um máximo intradiário a norte de 1,60%. Se considerarmos que a taxa a 10 anos nos EUA subiu 50 p.b. nos primeiros 2 meses do ano (0,9% para 1,4%), percebemos a verdadeira dimensão deste movimento, sendo que praticamente metade da subida das yields a 10 anos YTD nos EUA foi realizada exclusivamente na sessão de 25/02! O movimento foi agravado por players no segmento de MBS que foram obrigados a reduzir a duration dos seus portfolios através da venda de Treasuries (hedging de convexidade) – exacerbando o sell-off de pânico. Tendo em conta que o FED é um importante player deste mercado (detém mais de 30%), pensamos que a situação por esta via estabilizará rapidamente.
Em relação à dinâmica do mercado de taxas de juro, não é tanto o valor absoluto que importa, mas sim o ritmo e a escala do movimento de subida das yields que influencia as placas tectónicas sobre as quais assenta a evolução dos ativos de risco, pelo que apenas surpreendeu por defeito o sell-off do mercado acionista - perdas incidiram no segmento growth, emergentes e num conjunto de franjas especulativas (Bitcoins e afins). A evolução dos spreads de crédito corporativo foi, ainda assim, relativamente benigno face à dimensão do choque nas taxas de juro sem risco, ao passo que o mercado cambial sofreu uma volatilidade expressiva que obviamente favoreceu o USD, sobretudo em relação aos câmbios emergentes. Depois do Taper Tantrum de 2013 induzido pelo Fed, assistimos agora a um Tantrum induzido pelo mercado sobre a FED no que respeita a sua credibilidade de atingir o objetivo da estabilidade de preços – o que justifica tanto a subida das taxas de juro reais como propulsor dominante das taxas nominais nos últimos dias, bem como o sell-off mais expressivo nas maturidades intermédias (5-7 anos). Este facto reflete uma eventual antecipação do tapering e do próprio início da trajetória de subida da taxa refi – a qual o mercado passou a descontar, no limite, entre final de 2022 e o primeiro trimestre de 2023.
Resta ao FED parar de contemplar a subida das yields como algo benigno e atuar de forma decisiva para conter a subida das yields, reiterando que poderá adiar o tapering enquanto persistir este nível de volatilidade, sendo que o rebalanceamento dos portfólios institucionais no final de fevereiro com algum bid-in em treasuries também favoreceu uma estabilização do mercado. A própria votação final do plano fiscal de Biden poderá servir um efeito de capitulação venda/compra de treasuries após rumor e confirmação. Se estivermos certos e uma parte significativa dos apoios do Governo forem poupados, o problema no médio prazo poderá ser mesmo o de inflação no preço dos ativos financeiros e não tanto o de inflação no preço do consumidor. Atente-se que as taxas breakeven retrocederam significativamente na segunda metade de Fevereiro e a curva dos breakeven encontra-se atualmente invertida nos EUA, pelo que os investidores não parecem discordar em grande parte desta semântica. Se aprendemos alguma coisa com a recente saga Reddit/WallStreetBets, é que a convergência de políticas amplamente expansionistas monetárias e fiscais favorecem a emergência de “bolhas especulativas” que parecem ser evidentes nalgumas franjas do mercado. Só o tempo o dirá, mas será mesmo “desta vez diferente?”   
João Lampreia, Chief investment strategist, banco BiG, 05/03/2021
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