Venda exclusiva por leilão eletrónico pode prejudicar credores
O Conselho de Ministros aprovou um projeto de decreto-lei que, entre as várias alterações ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), reformula o canal de venda do património da massa insolvente. Em concreto, o canal de venda passa a ser “preferencialmente” por leilão eletrónico, deixando de ser uma escolha do administrador de insolvência.
Ricardo Afonso entende que esta solução não só retira autonomia ao administrador judicial como também ignora as vantagens do leilão presencial.
“Importa é exigir que todos os leilões sejam integrados pela possibilidade de licitação eletrónica”, defende o advogado.
Ricardo Afonso entende que esta solução não só retira autonomia ao administrador judicial como também ignora as vantagens do leilão presencial.
“Importa é exigir que todos os leilões sejam integrados pela possibilidade de licitação eletrónica”, defende o advogado.
Vida Económica – Que apreciação faz das alterações legislativas propostas, designadamente da que se reporta ao modo de venda dos bens nos processos de insolvência?
Ricardo Afonso – Na minha modesta opinião, as novidades que o projeto de decreto-lei pretende introduzir no processo de venda dos bens das massas insolventes, consignadas na redação que se propõe para o n.º 1 do artigo 164.º do CIRE, são profundamente inconvenientes.
VE – E quais são, na sua opinião, os problemas que a solução proposta contém?
RA – São vários e de diversa natureza. Resulta claro que o propósito maior que motiva o legislador, aliás estimável, é o de aportar para este contexto um nível acrescido de transparência. Daí que, por um lado, se dê preferência ao “leilão”. Presidindo aí, julgamos nós, a convicção de que essa modalidade de venda, face à natural publicidade que a envolve, é a que melhor salvaguarda o referido objetivo. Por outro lado, a preferência que se pretende dar à variante eletrónica do “leilão” parece ter subjacente o propósito de evitar entendimentos menos claros e até menos lícitos entre os operadores que oficiam neste mercado, designadamente, administradores de insolvência e leiloeiras. Só que, no meu entendimento, a fórmula escolhida, conforme indiciei, apresenta enormes insuficiências. Por um lado, não me parece ser a solução adequada para promover a transparência pretendida, depois, parece revelar profundo desconhecimento acerca do modo de operacionalização dos leilões judiciais e, sobretudo, do quadro legal que, atualmente, regula a atividade leiloeira em Portugal e, por último, subalterniza inadmissivelmente o objetivo maior dos processos de liquidação judicial, isto é, a majoração dos ativos transacionados.
VE – Pode concretizar?
RA – Com certeza. Em relação à questão da transparência, eu diria que, num sistema complexo e público como é este da liquidação judicial do acervo patrimonial das massas insolventes, a garantia de transparência e de legalidade não pode assentar na implementação dum procedimento que tenha como pressuposto a menor capacidade da figura a quem cabe, por designação judicial, a função de o implementar, que é, como sabemos, o administrador de insolvência. Nesse quadro, o que se pode e deve fazer é aumentar e melhorar os níveis de fiscalização, de forma separar o “trigo do joio”. A solução agora proposta, não temos dúvida, degrada, injustificadamente, a intervenção da qualidade técnica do administrador judicial, retirando-lhe a autonomia que, no âmbito da versão originária do CIRE, o mesmo detinha na escolha da modalidade de venda, que, evidentemente, deve ser determinada em função de um conjunto muito diversificado de fatores, sobretudo, relacionados com as especificidades da insolvência que se considere e da composição do acervo a alienar. Sendo certo que, ao contrário do que a fórmula proposta parece indiciar, a escolha da modalidade de venda, no quadro da legislação vigente, constitui uma opção fundamentada, tantas vezes, sujeita ao crivo da comissão de credores e até do tribunal.
Por outro lado, a identificação, como modalidade preferencial, da variante eletrónica do leilão parece, como disse, ignorar a forma como estes procedimentos se operacionalizam e, sobretudo, o atual quadro legal de regulação da atividade leiloeira, previsto no Decreto-Lei nº 155/2015, de 10 de agosto. Na verdade, se o objetivo é privilegiar a modalidade de venda “leilão” e se se pretende aproveitar as vantagens da variante eletrónica dessa modalidade, desde logo, pelas mais-valias que a mesma oferece ao nível do aumento exponencial do número de participantes, então o que importa é exigir que todos os leilões sejam integrados pela possibilidade de licitação eletrónica. Dessa forma, garantir-se-iam as vantagens da possibilidade da licitação eletrónica, sem se sacrificar os inegáveis benefícios que o leilão presencial também proporciona. Destacamos, entre outos, o quadro estruturado de divulgação e publicitação que a intervenção duma leiloeira proporciona, a capacidade de apresentação personalizada do leilão a clientes e investidores vocacionados para a área de negócio a que o mesmo se reportar e ainda, naturalmente, a mais-valia que uma entidade profissional especializada sempre garante na preparação dos atos de liquidação, designadamente, na apreensão, conservação e avaliação de bens. Como se compreende, a mera disponibilização passiva de uma listagem de ativos, própria de um leilão exclusivamente eletrónico, apresenta, nesse quadro, manifestas insuficiências quando comparadas com a modalidade presencial. Aliás, os dados estatísticos existentes a esse propósito são claros ao evidenciarem taxas de sucesso incomparáveis entre as duas modalidades, com vantagem substancial para a variante presencial.
Leilões de base presencial deveriam ter variante de licitação eletrónica
VE – Parece-lhe, portanto, que a separação entre as duas modalidades de leilão não faz sentido.
RA – Nenhum, com as valências tecnológicas atualmente existentes, o que será de exigir é que todos os leilões, de base necessariamente presenciais, também permitam licitação eletrónica. Aliás, nesse quadro, no que toca às leiloeiras, deve ser intensificado o esforço de regulamentação e fiscalização iniciado pelo Decreto-Lei nº 155/2015, no sentido de garantir que só operem neste mercado, particularmente sensível, entidades com idoneidade e credibilidade inquestionáveis, com sustentabilidade financeira comprovada e com meios suficientes para fazer frente aos desafios impostos pelas novas exigências do sector. Também aqui importa separar o “trigo do joio”.
VE – Que papel poderá, neste âmbito, desempenhar o portal e-leilões?
RA – Nenhum, conforme já referi, a atividade leiloeira está hoje, entre nós, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 155/2015, que atribui, de forma clara, competência exclusiva para o desenvolvimento da dita atividade às pessoas singulares e coletivas que, reunindo as devidas condições, sejam para tanto autorizadas pela Direção-Geral das Atividades Económicas. Não me parecendo, à partida, pelas mais elementares razões deontológicas, que uma ordem profissional como a dos solicitadores e dos agentes de execução possa beneficiar da necessária autorização legal. Aliás, nesse contexto, parece-me que o funcionamento da referida plataforma assenta em legalidade duvidosa, o mesmo acontecendo ao despacho ministerial que regulamenta a dita plataforma, precisamente por contrariar o disposto no referido decreto-lei que, como é evidente, lhe é hierarquicamente superior.
Venda em leilão eletrónico passa a ser vinculativa
O Conselho de Ministros aprovou, a 7 de março de 2017, uma proposta de decreto-lei que altera o Código da Sociedades Comerciais e o Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa. Quanto a este último, a disposição que está a gerar acesa controvérsia é a nova redação dada ao nº 1, do artigo 164º. Mais concretamente, na anterior versão, “o administrador de insolvência escolhe a modalidade da alienação dos bens”. Na nova versão, “o administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através da venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada”, optar por outra modalidade. |