Tendências recentes no contencioso da nacionalidade
António Manuel Beirão
Procurador da República
1. Respondendo ao amável convite da “Vida Judiciária” para uma edição especial que incluirá o Direito da Nacionalidade Portuguesa, parece-me adequado evidenciar tendências recentes relativamente a temas para as quais as entidades judiciárias têm sido convocadas a intervir, em especial o Ministério Público (MP).
2. O campo de intervenção reservado aos Tribunais, em matéria da nacionalidade, tem sido a ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade, sem prejuízo do interessado na atribuição ou aquisição da nacionalidade poder impugnar em juízo qualquer ato da entidade pública competente (a Conservatória dos Registos Centrais do IRN) que lhe seja desfavorável, sendo materialmente competente para a resolução dos litígios a jurisdição administrativa.
3. Trata-se aquela ação de iniciativa exclusiva do Ministério Público que, atuando em nome próprio, evoca a existência de um impedimento a que um cidadão estrangeiro possa adquirir a nacionalidade portuguesa, isto embora o tenha requerido por ser filho menor ou incapaz de pai ou mãe que tenha adquirido a nacionalidade portuguesa, ou por ser casado (ou viver em união de facto) com nacional português há mais de três anos (todos os demais casos de aquisição da nacionalidade estão excluídas da possibilidade de oposição, assim como todos os casos de atribuição).
4. Naturalmente que esta ação não se justifica por razões obscuras ou insindicáveis do MP, mas, pelo contrário, representa a defesa do interesse público em arredar da comunidade nacional os cidadãos estrangeiros que, embora possuindo um elo relevante que o liga a um nacional português estão, em simultâneo, abrangidos por uma ou mais das situações que o legislador elencou taxativamente no artigo 9.º da Lei da Nacionalidade como obstáculo a que possam adquirir a nacionalidade, a saber:
(i) a inexistência de ligação efetiva à comunidade a nacional;
(ii) a condenação com pena de prisão igual ou superior a 3 anos;
(iii) o exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro e
(iv) a existência de perigo ou ameaça para a segurança ou defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei.
5. Para o efeito, sempre que no decurso do respetivo processo para a aquisição da nacionalidade, que corre termos na Conservatória dos Registos Centrais, se evidenciem factos passíveis de integrar algum dos impedimentos em causa, aquela entidade susta a sua decisão e remete cópia do processo ao MP que, em função do apurado e de outros elementos que possa coligir, decidirá pela interposição ou não da ação judicial.
6. Se entre os anos de 2006 e 2016 estas ações representaram um número muito considerável de processos entrados no Tribunal Administrativo de Lisboa (com competência exclusiva para a sua tramitação em 1.ª instância), com as alterações legislativas recentes, nomeadamente introduzidas pelo DL 71/2017, de 21 de Junho, e pela Lei Orgânica 2/2018, de 5 de Julho, verificou-se uma redução significativa dos casos de possível oposição e, em consequência, do número de ações instauradas, realidade em sentido contrário ao crescente número de pedidos de nacionalidade portuguesa (pedidos que, em 2018, aumentaram cerca de 36% relativamente ao ano anterior).
7. A redução do número de processos entrados e, em consequência, de ações instauradas traduz-se no seguinte: no ano de 2016 deram entrada nos serviços do MP junto do Tribunal Administrativo de Lisboa um total de 1095 processos vindos da Conservatória dos Registos Centrais, para eventual ação de oposição, tendo sido instauradas um total de 842 ações judiciais.
Em 2017 (e já efeito do DL 71/2017) o número de ações judiciais interpostas reduziu para 347. E, em 2018, com as alterações da Lei Orgânica 2/2018, o número de processos entrados nos serviços do MP reduziu para 265, dando origem a 197 ações judiciais.
Finalmente, e já no primeiro semestre deste ano de 2019, entraram 79 processos que originaram 33 ações judiciais, o que nos permite prever um total do ano que rondará as 70 ações interpostas, ou seja, cerca de 8% das interpostas há 3 anos atrás.
8. A redução deste contencioso está associada, em primeiro lugar, à instituição, pelo legislador, de critérios objetivos de ligação efetiva à comunidade nacional, nomeadamente com a valorização da naturalidade do interessado em país de língua oficial portuguesa, circunstância que se aplaude, e que antes das reformas legislativas não era sempre valorizada, quer pelo MP, quer pela jurisprudência, e que gerava entendimentos muito vagos e díspares.
9. Para a mesma redução e ainda quanto ao impedimento da “ligação efetiva” contribuiu também a impossibilidade, agora expressa no artigo 9.º, n.º 2, da Lei, em deduzir oposição quando, em caso de casamento ou união de facto com nacional português, existam filhos com nacionalidade portuguesa (independentemente da nacionalidade do interessado). Aqui será de referir que se poderá ido longe de mais, pois não são raros os casos de cidadãos estrangeiros, de culturas e tradições muito distantes da portuguesa, que não percebem a língua portuguesa e que nunca estiveram em Portugal (o mesmo quanto ao cônjuge e filhos), mas contra quem se não pode evocar a falta de ligação efetiva à comunidade nacional, facto que, a nosso ver, mereceria melhor ponderação (exigindo-se ao menos o conhecimento da língua portuguesa, ainda que em grau elementar).
10. Também o passado criminal do estrangeiro, enquanto impedimento à aquisição da nacionalidade, foi objeto de profunda restrição pela Lei de 2018. Onde antes a condenação por crime que em abstrato admitisse a pena de prisão igual ou superior a 3 anos era fundamento para a oposição, exige-se agora que o mesmo estrangeiro tenha sido condenado em concreto numa pena de prisão em medida igual ou superior a 3 anos, exigência que reduz em muito os casos em que este impedimento pode ser evocado.
11. Em suma, se é verdade que os interessados na aquisição da nacionalidade portuguesa têm a sua situação mais definida no que toca aos eventuais impedimentos que poderiam obstar à mesma, merecendo particular elogio – a nosso ver – a tutela legal relativamente a pessoas naturais de países de língua oficial portuguesa, o facto da nacionalidade portuguesa permitir o acesso ilimitado à cidadania europeia e respetivo espaço de circulação, objetivo tantas vezes admitido como determinante pelos interessados, convertendo a nacionalidade num negócio, não podem deixar o legislador e o aplicador do Direito descansados, mas antes deve motivar o aperfeiçoamento dos instrumentos legais que permitam lutar contra fenómenos de mercantilização da cidadania.