A informação sobre o país de origem do requerente de proteção internacional – breves notas sobre relevância e qualidade
Inês Carreirinho
Coordenadora Jurídica Conselho Português para os Refugiados (CPR)
Muito se tem escrito nos últimos anos sobre a utilização de informação sobre o país de origem (IPO) em procedimentos de proteção internacional, nomeadamente no que respeita às suas funções e aos critérios de qualidade aplicáveis.(1) Dada a sua relevância para a efetividade dos procedimentos de proteção internacional, o presente artigo visa sintetizar os aspetos essenciais das principais ferramentas neste domínio.
A informação sobre o país de origem (IPO) do requerente é um elemento com relevância para a análise de pedidos de proteção internacional, contextualizando os factos relevantes e apoiando a sua qualificação jurídica. É definida como “informação sobre a situação no país de proveniência do refugiado que é utilizada em procedimentos de determinação de necessidades de proteção”(2), permitindo a caracterização “da situação de direitos humanos e de segurança, da situação política e contexto jurídico, de aspetos culturais e comportamentos sociais, da situação humanitária e económica, de eventos e incidentes, bem como da geografia nos países de origem dos requerentes (ou, no caso de pessoas apátridas, nos países de residência habitual) ou países de trânsito.”(3)
A importância da IPO é amplamente reconhecida(4), encontrando acolhimento expresso no Direito da União Europeia(5) e no ordenamento jurídico nacional.
No contexto português, o artigo 18º da Lei do Asilo(6) elenca as regras aplicáveis à análise de pedidos de proteção internacional, fazendo referência, no seu número 2, a um conjunto de elementos que a entidade instrutora deverá ter “especialmente” em conta. A par das circunstâncias individuais do requerente, aludidas na alínea b), e dos elementos elencados nas alíneas subsequentes, a norma exige que sejam considerados “Os factos pertinentes respeitantes ao país de origem, obtidos junto de fontes como o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo, o ACNUR e organizações de direitos humanos relevantes, à data da decisão sobre o pedido, incluindo a respetiva legislação e regulamentação e as garantias da sua aplicação”.(7)
Assim, a ponderação de tal informação é, não só condição essencial à qualidade dos procedimentos em causa, mas também formalidade essencial à validade da decisão a proferir.
Apesar de a lei portuguesa não concretizar o papel da IPO, é reconhecido que esta tem relevância tripla, como (i) elemento preparatório, (ii) elemento relevante para a análise da credibilidade das declarações do requerente e (iii) elemento relevante para a análise dos requisitos de elegibilidade das formas de proteção previstas na lei(8), em particular do risco de perseguição ou de ofensa grave.(9)
Pela sua natureza, os procedimentos de proteção internacional são frequentemente marcados pela distância entre o examinador e os factos invocados pelo requerente e o seu contexto. Tal distância é simultaneamente física, cultural e linguística(10) e comporta desafios tanto para os órgãos decisores como para os prestadores de apoio jurídico a requerentes de proteção internacional.
É neste contexto que, num primeiro momento, a IPO tem uma função preparatória, na medida em que possibilita a familiarização desses intervenientes, ainda que com óbvias limitações, com o contexto do requerente e, consequentemente, uma melhor condução das necessárias diligências (nomeadamente da entrevista pessoal a realizar pelo órgão instrutor)(11). Neste âmbito, a IPO pode ainda auxiliar a ‘desmistificar’ eventuais preconceções dos intervenientes relativamente ao contexto do requerente passíveis de afetar a qualidade do procedimento(12).
A IPO desempenha igualmente um papel no estabelecimento dos factos. Dadas as frequentes limitações aos meios de prova disponíveis(13), não raras vezes, as declarações do requerente são um dos poucos elementos que este pode aduzir ao processo. Na inexistência de elementos de prova individuais adicionais, a utilização de IPO é elemento essencial para uma análise adequada da credibilidade das declarações do requerente de proteção, em particular da sua coerência externa (i.e. a compatibilidade dos factos essenciais invocados pelo requerente com a informação publicamente disponível sobre o contexto relevante)(14).
Finalmente, a IPO é elemento essencial à análise do preenchimento dos requisitos do estatuto de proteção aplicável, em particular do risco de sujeição a perseguição ou ofensa grave(15), permitindo contextualizar os factos invocados pelo requerente e outros elementos de prova eventualmente disponíveis, bem como aferir os riscos (atuais e prospetivos) a que o requerente está/estaria exposto no país em causa(16).
Nestas duas últimas acepções, a IPO atua, verdadeiramente, como um elemento de prova(17). Nas suas três dimensões de relevância, a necessidade de recolher e considerar devidamente informação sobre o país de origem é também reflexo da partilha do dever de consubstanciação do pedido de proteção internacional entre requerente e examinador(18).
Tendo em conta a relevância crítica da IPO na análise de pedidos de proteção internacional, a justeza e adequação da mesma depende da qualidade e da fiabilidade da informação considerada. Como tal, têm vindo a ser desenvolvidos critérios de qualidade ancorados em princípios(19) e normas jurídicas relevantes(20).
Assim, para cumprir as referidas funções, a IPO deve ser relevante, fidedigna e equitativa, precisa e atual, transparente e rastreável(21).
Relevante porque adequada ao seu propósito, relacionando-se com os conceitos jurídicos aplicáveis e com a situação invocada pelo requerente de proteção(22). Fidedigna e equitativa porque proveniente de diversas fontes credíveis, considerando os preconceitos que lhes são inerentes(23). Precisa e atual porque válida aquando da análise do pedido de proteção internacional e verificada através de diversas fontes(24). Transparente e rastreável por ser possível identificar a sua fonte, por ter conteúdo claro e não distorcido(25).
Não obstante a fulcral relevância da informação sobre o país de origem, esta tem também importantes limitações que devem ser tidas em conta na sua utilização. Tal informação é tendencialmente geral, marcada pelos preconceitos inerentes às suas fontes, pelo reporte frequentemente limitado de situações que visem especificamente determinados grupos ou situações e pelas dificuldades de acesso e de reporte existentes em alguns contextos (nomeadamente quando seja vedado ou limitado o acesso a organizações independentes ou quando existam restrições à liberdade de expressão)(26).
Não sendo, portanto, panaceia para todas as dificuldades enfrentadas na análise de casos concretos nem permitindo esclarecer todas as dúvidas que nesse âmbito surgem(27), IPO de qualidade é certamente um elemento essencial à sua redução. Como tal, é necessário que os operadores do Direito que intervêm nesta área estejam cientes das suas funções, familiarizados com as exigências que devem orientar a sua recolha e utilização e conscientes das suas limitações. Descurá-la implica analisar os pedidos no vazio, pondo em causa a adequação e a efetividade dos procedimentos de proteção internacional, o que pode acarretar consequências extremas para os requerentes.
Noats:
1. São exemplos de particular relevância: ACCORD, Researching Country of Origin Information: Training Manual, 2013; GYULAI, Gábor, Country Information in Asylum Procedures: Quality as a Legal Requirement in the EU, Hungarian Helsinki Committee, 2011; União Europeia, Common EU Guidelines for Processing Country of Origin Information (COI), 2008; International Association of Refugee Law Judges, Judicial Criteria for Assessing Country of Origin Information (COI): A Checklist, 2006; Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Country of Origin Information: Towards Enhanced International Cooperation, 2004.
2. ACCORD, Researching Country of Origin Information: Training Manual, 2013 (doravante Manual ACCORD), p.12. Tradução livre.
3. Ibidem.
4. Manual ACCORD; GYULAI, Gábor, Country Information in Asylum Procedures: Quality as a Legal Requirement in the EU, Hungarian Helsinki Committee, 2011; União Europeia, Common EU Guidelines for Processing Country of Origin Information (COI), 2008; International Association of Refugee Law Judges, Judicial Criteria for Assessing Country of Origin Information (COI): A Checklist, 2006; Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Country of Origin Information: Towards Enhanced International Cooperation, 2004.
5. Em particular: artigo 4º, nº3, al.a) da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento e do Conselho de 13 de Dezembro de 2011 e artigo 10º, nº3, al.b) da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento e do Conselho de 26 de Junho de 2013.
6. Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, alterada e republicada pela Lei nº 26/2014, de 5 de Maio.
7. Artigo 18º, número 2, alínea a). Note-se que não se pretende nesta sede fazer uma análise da conformidade das normas nacionais com as previsões do Direito da União Europeia.
8. Artigos 3º e 7º da Lei do Asilo.
9. Manual ACCORD, pp.16-17.
10. Hungarian Helsinki Committee, Credibility Assessment in Asylum Procedires – A Multidisciplinary Training Manual, Vol.1, 2013 (doravante Manual CREDO – Vol.1), pp.11-13.
11. Manual ACCORD, p.16.
12. Por exemplo, a experiência que um examinador/prestador de assistência teve enquanto turista num determinado local pode levá-lo a crer que conhece de forma adequada o contexto em causa. Não raramente, contudo, essa experiência não espelhará as condições enfrentadas por uma pessoa originária do país ou que aí se encontre em circunstâncias distintas.
13. Sobre as limitações aos meios de prova, ver, por exemplo, Manual CREDO – Vol.1, p.10.
14. Manual ACCORD, p.16. Note-se que a análise da credibilidade das declarações do requerente de proteção é parte do estabelecimento dos factos, tratando-se de um processo complexo que se deverá executar de forma sistemática e ser orientada por princípios específicos. Para mais ver Manual CREDO, Vols.1 e 2.
15. Manual ACCORD, p.17.
16. HATHAWAY, James C., FOSTER, Michelle, The Law Of Refugee Status, Cambridge University Press, Julho de 2014, p. 122.
17. Manual ACCORD, pp.21-24.
18. ACNUR, Handbook on Procedures and Criteria for Determining Refugee Status and Guidelines on International Protection Under the 1951 Convention and the 1967 Protocol Relating to the Status of Refugees, 2019, par.195-212; ACNUR, Note on Burden and Standard of Proof in Refugee Claims, 1998.
19. Sobre os princípios essenciais de neutralidade e imparcialidade, igualdade de armas no acesso à informação, utilização de informação publicamente acessível e proteção de dados ver Manual ACCORD, p.36-38.
20. Sobre as diferentes sistematizações dos critérios de qualidade aplicáveis à informação sobre o país de origem, ver, por exemplo, Manual ACCORD p.38-42. Sobre o enquadramento jurídico relevante ver GYULAI, Gábor, Country Information in Asylum Procedures: Quality as a Legal Requirement in the EU, Hungarian Helsinki Committee, 2011. Sobre as exigências aplicáveis ver também HATHAWAY, James C., FOSTER, Michelle, The Law Of Refugee Status, Cambridge University Press, Julho de 2014, p. 122-135.
21. Segue-se aqui a classificação utilizada no Manual ACCORD; e GYULAI, Gábor, Country Information in Asylum Procedures: Quality as a Legal Requirement in the EU, Hungarian Helsinki Committee, 2011.
22. Manual ACCORD, p.31.
23. Ibid., p.32.
24. Ibid., p.34-35.
25. Ibid., p.35-36.
26. Ibid., p.27-29.
27 Sobre o grau de convição do examinador em procedimentos de proteção internacional ver Manual CREDO – Vol.1, pp.16-20.