Combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo em Moçambique. O desafio da próxima década!
Ricardo Néry
Advogado na RSA-RAPOSO SUBTIL E ASSOCIADOS - SOCIEDADE DE ADVOGADOS, SP, RL
Carlos Freitas Vilanculos
Advogado em Moçambique
RSA-Rede de Serviços de Advocacia de Língua Portuguesa
Mesmo debaixo de forte contestação da sociedade civil Moçambicana, o Governo pagou no final de 2019 uma parcela da reestruturação das dívidas da Ematum, uma das três empresas envolvidas nas dívidas ocultas, estimadas em cerca de 2 mil milhões de euros. No total, o valor da reestruturação é de 659,56 milhões de euros, emitidos em 2016, e agora Moçambique desembolsou uma “tranche” de 36 milhões de euros.
A transação acontece justamente na altura em que decorre o julgamento de um caso de ilícitos financeiros nos EUA ligado às dívidas ocultas. A coincidência, ou não, acirrou as desconfianças da sociedade civil e lançou, uma vez mais, a discussão sobre o branqueamento de capitais no País.
Atualmente, a legislação aplicável em sede de prevenção de branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo em Moçambique é regulada pela Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto de 2013 – Lei de Prevenção e combate ao branqueamento de capitais (“Lei 14/2013”) (que revogou a Lei n.º 7/2002 de 5 de Fevereiro), com vista a adequar o seu conteúdo aos padrões normativos internacionais de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, pelo Decreto n.º 66/2014, que aprova o regulamento da referida Lei 14/2013, e pelo Aviso n.º 4/GBM/2015, de 17 de Junho, que aprova as diretrizes sobre esta matéria.
No país, existe ainda o Gabinete de Informação Financeira de Moçambique (“GIFIM”) criado pela Lei nº 14/2007, de 27 de Junho, que é um órgão do Estado, dotado de autonomia administrativa, que funciona sob tutela do Conselho de Ministros e que tem por objeto a recolha, centralização, análise e difusão às entidades competentes, de informações respeitantes a operações económico-financeiras suscetíveis de consubstanciar atos de branqueamento de capitais e outros crimes conexos.
Segundo o GIFIM, o Estado e o sector privado devem trabalhar conjuntamente para proteger o sistema financeiro do crime organizado e do terrorismo, pois Moçambique lidera (ainda) a lista dos países com maior riso de branqueamento de capitais a favor do terrorismo. O GIFIM defende mesmo a mobilização do setor privado no combate ao branqueamento de capitais e terrorismo, assinalando que os fluxos financeiros entre grupos criminosos são principalmente gerados por entidades não estatais.
A Lei n.º 14/2013 tipifica o crime de branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo no n.º 1 do artigo 4.º e do artigo 5.º nos seguintes termos: (i) comete crime de branqueamento de capitais aquele que, intencionalmente ou devendo ter conhecimento converter, transferir, auxiliar ou facilitar qualquer operação de conversão, transferência de produtos do crime, no todo ou em parte, de forma direta ou indireta, com o objetivo de ocultar ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar a pessoa implicada na prática das atividades criminosas a eximir-se das consequências jurídicas dos seus atos; ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade de produtos do crime ou direitos relativos a eles ou adquirir, possuir a qualquer título ou utilizar bens, sabendo da sua proveniência ilícita no momento da receção; (ii) comete crime de financiamento ao terrorismo aquele que, por quaisquer meios, direta ou indiretamente e intencionalmente, fornece ou recolhe fundos, com a intenção de que sejam utilizados ou sabendo que serão utilizados, no todo ou em parte, para levar a cabo um ato terrorista por um terrorista individual ou uma organização terrorista.
Ao crime de branqueamento de capitais corresponde pena de 2 a 12 anos de prisão maior (artigo 75.º, n.º 1) e ao de financiamento ao terrorismo pena de 10 a 24 anos de prisão maior (artigo 75.º n.º 2).
O tempo demostrou, no entanto, ser necessária uma melhor orientação da atuação das instituições financeiras, que nos termos da Lei 14/2003 se encontram sob alçada de supervisão do Banco de Moçambique, em relação a esta temática. Nesse sentido, em 2015 foi publicado o Aviso n.º 4/GBM/2015, que estabelece os procedimentos e medidas de prevenção e repressão ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo.
Nestes termos, atualmente, as instituições financeiras e as entidades não financeiras devem adotar procedimentos para prevenir e sancionar a utilização do sistema financeiro para branqueamento de capitais financiamento ao terrorismo e crimes conexos, dos quais destacamos os seguintes:
As instituições financeiras devem manter um registo da identificação dos seus clientes do qual conste, entre outras informações, no caso das pessoas individuais, o nome completo, estado civil, morada, número de identificação tributária (“NUIT”) e, no caso das empresas, a sua identificação, NUIT e a identidade dos titulares das participações no capital superiores a 20%; recusar a operação e enviar informação sobre a transação suspeita ao GIFIM, sempre que exista suspeita da prática de crime; manter cópia dos documentos comprovativos do dever de identificação e verificação, registo de transações nacionais ou internacionais que sejam suficientes para permitir a reconstituição da operação, por um período mínimo de 15 anos a contar do termo da relação de negócio e do encerramento da conta, bem como reunir informação sobre o nome do emitente, nome do beneficiário e o número de conta de destino, nas transferências eletrónicas de montante inferior a 30.000,00 MT. Se a transferência for de montante igual ou superior a 30.000,00MT, deve conter a menção do nome do remetente, do número da conta de origem, do endereço do remetente, acompanhado do número do documento de identificação válido e do número da conta do beneficiário.
No caso dos casinos, os mesmos estão obrigados a proceder à identificação dos jogadores ou apostadores que intervenham em jogo ou apostas de valor igual ou superior a 90,000,00 MT, ou sempre que exista suspeita de branqueamento de capitais ou financiamento ao terrorismo. Devem ainda proceder à identificação dos jogadores ou apostadores no ato de aquisição de fichas, créditos ou outros símbolos de jogo independente do seu valor;
Os cartórios e as conservatórias devem proceder à identificação das partes intervenientes, o negócio realizado, o montante envolvido e o ato notarial celebrado sempre que haja compra e venda de imóveis, gestão de valores, títulos e outros ativos, gestão de poupanças bancária, criação, gestão e exploração de sociedades;
Também as entidades que se dediquem às atividades de mediação imobiliária e de compra e revenda de imóveis, bem como as entidades construtoras que procedam à venda direta de imóveis estão obrigadas a identificar os seus clientes sempre que efetuem transações de compra e venda ou exista suspeita de branqueamento de capitais.
As instituições financeiras e não financeiras estão obrigadas a comunicar imediatamente ao GIFIM as transações suspeitas de branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, em regra por via eletrónica.
A Autoridade Tributária de Moçambique, através da Direção-Geral das Alfândegas, deve, ainda, comunicar ao GIFIM sempre que exista declaração de entrada ou saída de moeda nacional ou estrangeira, títulos negociáveis ao portador, ouro amoedado ou em barra, de valor superior a 150.000,00 MT.
Refira-se, também, que em 2018 o Governo de Moçambique reforçou a sua capacidade de supervisão, prevenção e combate ao branqueamento de capitais com a aprovação, na generalidade, pela Assembleia da República, da atualização da lei que criou o GIFIM, pretendendo-se, entre outras coisas, reforçar a competência do GIFIM para receber a comunicação de transações financeiras suspeitas de estarem associadas a atividades ilícitas, como o financiamento do terrorismo, por exemplo, e pretende, ainda, criar brevemente uma unidade para recuperar ativos resultantes de atividades criminosas, com destaque para o branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo.
Existe, assim, um cada vez maior controlo e preocupação das entidades de supervisão moçambicanas e, pela primeira vez, por violação da Lei 14/2013, o Banco de Moçambique sancionou recentemente vinte instituições financeiras, por infrações cometidas entre 2014 e 2018, tendo sido a maior multa aplicada no valor de 1,1 milhões de euros.
No mais está prevista para este ano de 2020 uma avaliação do risco de Moçambique se envolver no financiamento ao terrorismo e de branqueamento de capitais pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) O escrutínio por esta organização internacional será importante para um diagnóstico sobre o perigo de Moçambique ser usado para o financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais, pois esta avaliação serve para as instituições vinculadas ao GAFI conhecerem melhor os riscos de o país se envolver no financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais.
Esta avaliação decorre da adesão do país ao Grupo de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais da África Austral e Oriental (ESAAMLG), instituição vocacionada à uniformização de padrões internacionais de combate à criminalidade financeira internacional.
O GAFI é um organismo intergovernamental criado com o objetivo de desenvolver e promover políticas, nacionais e internacionais, de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Em suma, as regras estão lançadas e o desafio dos próximos tempos será mesmo o de mostrar aos mercados internacionais que a capacidade das entidades moçambicanas de supervisão, prevenção e combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo está reforçada num pais onde, segundo conforme previsão do Fundo Monetário Internacional, se espera que a economia venha a registar uma forte recuperação em 2020, a que associa uma taxa de inflação baixa.
Lei 14/2013, de 12 de Agosto (Lei de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo)
Súmula de artigos principais
Artigo 3 (Âmbito de aplicação)
A presente Lei aplica-se às instituições financeiras e às entidades não financeiras com sede em território nacional, bem como às respectivas sucursais, agências, filiais ou qualquer outra forma de representação e a outras instituições susceptíveis de prática de actos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
2. Para efeitos da presente Lei, são instituições financeiras:
a) instituições de crédito e sociedades financeiras definidas por lei:
– Instituições de crédito:
i. bancos;
ii. sociedades de locação financeira;
iii. cooperativas de crédito;
iv. sociedades de factoring;
v. sociedades de investimento;
vi. microbancos, nos diversos tipos admitidos na legislação aplicável;
vii. instituições de moeda electrónica;
viii.outras empresas que sejam qualificadas como instituições de crédito por Decreto do Conselho de Ministros.
- Sociedades financeiras:
i. sociedades financeiras de corretagem;
ii. sociedades corretoras;
iii. sociedades gestoras de fundos de investimento;
iv. sociedades gestoras de património;
v. sociedades de capital de risco;
vi. sociedades administradoras de compras em grupo;
vii. sociedades emitentes ou gestoras de cartões de crédito;
viii. casas de câmbio;
ix. casas de desconto;
x. outras empresas que sejam qualificadas como sociedades financeiras por Decreto do Conselho de Ministros.
b) operadores de microfinanças definidos por lei;
c) seguradoras, resseguradoras, sociedades gestoras de fundos de pensões, mediadores de seguros, outras entidades de investimentos com estas relacionadas;
d) bolsas de valores;
e) quaisquer outras pessoas ou entidades que exerçam outras actividades ou operações e que venham a ser enquadradas como tal por legislação específica.
3. São entidades não financeiras:
a) casinos e instituições que se dediquem a actividade de jogo de fortuna ou de azar;
b) entidades que exerçam actividades de mediação imobiliária e de compra e revenda de imóveis, bem como entidades construtoras que procedam à venda directa de imóveis;
c) agentes ou negociantes de pedras e metais preciosos;
d) vendedores e revendedores de veículos;
e) advogados, notários, conservadores e profissões jurídicas independentes, contabilistas e auditores independentes quando envolvidos em transacções no interesse dos seus utentes ou noutras circunstâncias, relativamente às seguintes actividades:
i) compra e venda de imóveis;
ii) gestão de fundos, valores mobiliários ou outros bens do cliente;
iii) gestão de contas bancárias de poupança ou de valores mobiliários;
iv) organização de contribuições destinadas a criação, exploração ou gestão de sociedades;
v) criação, exploração ou gestão de pessoas colectivas ou de entidades sem personalidade jurídica, e a compra e venda de entidades comerciais.
f) empresas de correios, na medida em que exerçam a actividade financeira;
g) prestadores de serviços a fundos fiduciários e empresas, não abrangidos pelas alíneas anteriores, que forneçam os seguintes serviços numa base comercial:
i) formação, inscrição e gestão de pessoas colectivas;
ii) exercício do cargo, ou actuando para que outra pessoa exerça o cargo de director ou secretário de uma empresa, sócio de uma sociedade ou de uma posição semelhante em relação a outras pessoas colectivas;
iii) fornecimento de escritório, endereço ou instalações para uma empresa, sociedade ou qualquer pessoa ou instrumento jurídico;
iv) exercício do cargo de ou actuando para que outra pessoa exerça o cargo de accionista em nome de outrem.
v) exercício da actividade de importação e exportação de mercadorias.
4. A presente Lei aplica-se igualmente às sucursais, agências, filiais ou qualquer outra forma de representação em território nacional de instituições financeiras e entidades não financeiras estabelecidas no estrangeiro, bem como, às representações de entidades nacionais situadas no estrangeiro.
Artigo 4 (Branqueamento de capitais)
1. Comete crime de branqueamento de capitais aquele que, nos termos do artigo 7 da presente Lei, intencionalmente ou devendo ter conhecimento:
a) converter, transferir, auxiliar ou facilitar qualquer operação de conversão, transferência de produtos do crime, no todo ou em parte, de forma directa ou indirecta, com o objectivo de ocultar ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar a pessoa implicada na prática das actividades criminosas a eximir-se das consequências jurídicas dos seus actos;
b) ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade de produtos do crime ou direitos relativos a eles;
c) adquirir, possuir a qualquer título ou utilizar bens, sabendo da sua proveniência ilícita no momento da recepção.
2. O conhecimento, intenção ou propósito requeridos como elementos constitutivos do crime podem ser inferidos de circunstâncias factuais e objectivas.
3. A punição pelo crime de branqueamento de capitais tem lugar ainda que o facto ilícito relativo ao crime conexo tenha sido praticado no estrangeiro, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.
4. A tentativa de branqueamento de capitais é punível nos termos previstos no Código Penal.
5. A cumplicidade e o encobrimento são punidos nos termos do Código Penal.
Artigo 5 (Financiamento do terrorismo)
Comete o crime de financiamento do terrorismo aquele que, por quaisquer meios, directa ou indirectamente e intencionalmente fornece ou recolhe fundos, com a intenção de que sejam utilizados ou sabendo que serão utilizados, no todo ou em parte:
a) para levar a cabo um acto terrorista;
b) por um terrorista individual ou uma organização terrorista.
O crime considera-se cometido independentemente da ocorrência de qualquer acto terrorista referido no n.º 1, ou de os fundos terem sido efectivamente utilizados para cometer tal acto.
A punição pelo crime de financiamento do terrorismo tem lugar ainda que o acto terrorista tenha sido planeado em jurisdição estrangeira ou para o financiamento de terroristas ou de organizações terroristas em jurisdição estrangeira.
O conhecimento, intenção ou propósito, requeridos como elementos constitutivos do crime, podem ser inferidos de circunstâncias factuais e objectivas.
A cumplicidade, o encobrimento e a instigação para cometer o crime de financiamento do terrorismo são punidos nos termos do Código Penal.
Artigo 26 (Exclusão de responsabilidades)
As instituições financeiras e as entidades não financeiras ou os seus directores ou empregados que, de boa-fé, comuniquem transacções suspeitas ou forneçam informação ao GIFiM, nos termos desta Lei, não estão sujeitos a responsabilidade administrativa, civil ou criminal por violação de contrato e de segredo bancário ou profissional.
Nenhuma acção legal por branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo pode ser intentada contra as instituições financeiras e as entidades não financeiras, nem contra os seus directores ou empregados em consequência da execução de uma transacção suspeita quando esta tenha sido comunicada nos termos do número anterior.
Artigo 37 (Apreensão e confisco de bens e direitos)
Sem prejuízo do disposto em legislação diversa, os fundos, direitos e quaisquer outros objectos depositados em bancos ou outras instituições de crédito pertencentes ao suspeito ou sobre os quais ele exerce poder de facto correspondente ao direito de propriedade ou qualquer outro direito real ficam sujeitos à apreensão, como forma de preservar a disponibilidade desses activos, e ainda ao confisco.
Artigo 38 (Apreensão de bens e direitos)
O Juiz, a requerimento do Ministério Público, deve, no prazo de 48 horas, decretar a apreensão de fundos, bens, direitos e quaisquer outros objectos em nome do suspeito ou de terceiros, quando tiver fundadas razões para crer que eles constituem produto do crime, ou se destinam à actividade criminosa ou ainda haja indícios suficientes de prática de crime de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.
O Juiz pode determinar a devolução dos referidos fundos, bens, direitos, objectos apreendidos ao suspeito, quando se comprove a licitude da sua origem.
Artigo 72 (Prescrição)
Para efeitos de prescrição do procedimento criminal e das contravenções, aplica-se o disposto no Código Penal.
O procedimento relativo às contravenções previstas neste capítulo prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data da sua prática. As multas e medidas acessórias prescrevem no prazo de cinco anos, a contar da data em que a decisão administrativa se torne definitiva ou da data em que a decisão judicial transita em julgado.