Alcance da atuação do supervisor preventivo do BCFT – breve subsídio para uma interpretação dos poderes conferidos pelo quadro normativo em vigor
Gonçalo Maia Miranda
Coordenador de Área no Banco de Portugal*
Em abril de 2017, as Autoridades Europeias de Supervisão (ESAs)1 publicaram as suas Orientações Conjuntas relativas às características da abordagem baseada no risco em matéria de supervisão do antibranqueamento de capitais e do combate ao financiamento do terrorismo e às medidas a tomar ao exercer a supervisão baseada no risco (Orientações relativas à supervisão baseada no risco, doravante designadas de “Orientações Conjuntas”)2. Nessas Orientações Conjuntas, as ESAs estabelecem as etapas em que se deve decompor o modelo posto em prática pelas autoridades responsáveis pela supervisão das instituições financeiras em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (BCFT), identificando as fontes a considerar e os critérios para definir as ações mais adequadas ao acompanhamento das instituições supervisionadas.
Em linha com o disposto nas Orientações Conjuntas e na Recomendação 28 do Grupo de Ação Financeira (GAFI), atinente à regulação e supervisão das instituições financeiras em matéria de prevenção do BCFT, o artigo 102.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto (doravante, “Lei n.º 83/2017”), determina às autoridades de supervisão (e demais autoridades setoriais previstas na lei) que, no exercício da sua atividade de verificação dos deveres consignados na referida Lei, identifiquem e avaliem, numa base permanente, os riscos de BCFT associados às respetivas instituições supervisionadas, os quais, por sua vez, determinarão o tipo, a frequência e a intensidade das ações de supervisão a adotar. Para este efeito, as autoridades de supervisão devem exercer os seus poderes de modo a garantir o acesso a toda a informação relevante para a compreensão daqueles riscos, aqui se incluindo, de acordo com as Orientações Conjuntas, elementos sobre (i) a estrutura de propriedade e controlo da instituição supervisionada, (ii) a reputação e integridade dos membros do órgão de administração, dos gestores de topo e dos participantes qualificados, (iii) a natureza e complexidade dos produtos, serviços, transações e canais de distribuição disponibilizados, (iv) a tipologia de clientes, (v) a área geográfica de atuação, (vi) a qualidade das estruturas de governo e controlo interno, designadamente ao nível das funções de auditoria e de compliance, (vii) a cultura de compliance prevalecente e (viii) o grau de conformidade com os requisitos legais e regulamentares e a eficácia das políticas e procedimentos em matéria de prevenção do BCFT. Com base nos elementos apurados, a autoridade de supervisão ajustará por exemplo a intensidade e a intrusividade do plano individual de supervisão ao risco de BCFT da instituição supervisionada em causa, determinando nessa base, de acordo com as Orientações Conjuntas, a extensão da revisão inspetiva dos ficheiros de clientes, das amostras de transações examinadas pela instituição e das comunicações de operações suspeitas efetuadas. A este propósito, as Orientações Conjuntas reconhecem ainda que em situações de risco mais elevado é pouco plausível a suficiência de uma mera análise das políticas e procedimentos declarados pela instituição supervisionada, impondo-se uma avaliação da sua efetiva implementação, com recurso às técnicas de revisão já descritas. Neste contexto, observa-se que nem as Orientações Conjuntas nem a soft law produzida pelo GAFI aludem, para efeitos de supervisão contínua, a expedientes de teor mais intrusivo do que as técnicas de amostragem, como seriam o acompanhamento em tempo real (ou a autorização prévia) de operações pelo supervisor ou a realização por este, em substituição das instituições supervisionadas, dos deveres preventivos do BCFT quanto a tais operações. Em todo o caso, o artigo 97.º da Lei n.º 83/2017 prevê, como mecanismo de última ratio, a possibilidade de as autoridades setoriais adotarem medidas corretivas destinadas a sanar ou prevenir incumprimentos aos deveres preventivos do BCFT, que poderão passar pela diminuição ou eliminação da exposição a determinadas atividades ou operações ou, bem assim, pela criação de novas obrigações de comunicação ou pela intensificação das comunicações existentes, nomeadamente sobre operações efetuadas.
Em suma, a lei portuguesa, em linha com as melhores práticas internacionais, direciona os poderes das autoridades setoriais para a verificação do cumprimento dos deveres preventivos do BCFT, com recurso a estratégias de supervisão focadas na aferição da eficácia dos procedimentos e controlos implementados pelas entidades obrigadas, cujo grau de intrusividade deverá variar em função do concreto risco de BCFT. Tal não significa, contudo, o exercício dos deveres preventivos em substituição das entidades obrigadas ou o exercício de competências investigatórias ou de “follow the money” que são pertença de autoridades que intervêm a jusante na cadeia de combate ao BCFT3.
Ora, se a lei entrega às entidades obrigadas a responsabilidade principal pelo cumprimento dos deveres preventivos, incluindo o de comunicar operações potencialmente suspeitas, e se não compete às autoridades setoriais sindicar a eventual ilicitude criminal de operações concretas, coloca-se a questão de saber se o atual sistema de combate ao BCFT encerra em si mesmo uma lacuna ou “ângulo morto”. Tal lacuna, a existir, situar-se-ia entre o sistema de prevenção e o sistema de repressão e consistiria na não previsão de mecanismos concretos para identificar e até impedir, numa fase pré-investigatória, operações que, não tendo sido comunicadas pelas entidades obrigadas, possam consubstanciar indicadores de suspeição.
A este respeito, recorda-se que as autoridades destinatárias das comunicações de operações suspeitas [Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria-Geral da República (DCIAP) e Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária (UIF)] dispõem, à luz do disposto no artigo 53.º da Lei n.º 83/2017, de prerrogativas de cooperação por parte das entidades obrigadas que transcendem em muito a obtenção de informação apenas sobre operações comunicadas, como se afere do n.º 4 daquela previsão normativa. No entanto, afigura-se ainda mais impressivo o n.º 3 da mesma disposição, naquilo que aparenta ser uma flexibilização do mecanismo de controlo de contas estatuído na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, porquanto permite àquelas autoridades determinarem às respetivas entidades executantes a imediata comunicação de qualquer operação proposta, tentada, iniciada ou executada.
Por outro lado, o artigo 81.º da Lei n.º 83/2017 atribui explicitamente ao DCIAP a prerrogativa de realizar ações de prevenção do branqueamento de capitais4 e da respetiva criminalidade subjacente, no âmbito das quais exerce também os poderes conferidos pelo n.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º 36/945, de 29 de setembro, na sua redação atual. De entre esses poderes conta-se a recolha de informação relativamente a notícias de factos suscetíveis de fundamentar suspeitas do perigo da prática de um crime, o que permite, também por esta via, atuar ex ante relativamente a operações potencialmente suspeitas. Nessa conformidade, e obedecendo a uma lógica de aproveitamento de toda a informação relevante, a alínea b) do n.º 2 do artigo 48.º da Lei n.º 83/2017 postula a admissibilidade da suspensão temporária da execução de operações, com base na informação coligida no âmbito das ações de prevenção, ainda que a mesma não respeite a operações objeto do exercício dos deveres de comunicação abstenção.
Desta forma, crê-se ficar demonstrado que o sistema nacional de prevenção e combate ao BCFT não denota lacunas na adequada monitorização de operações potencialmente suspeitas, estabelecendo competências claras em cada uma das fases em que se decompõe:
– Fase de prevenção: a execução dos deveres preventivos compete às entidades obrigadas, cabendo aos supervisores a verificação dos respetivos controlos e procedimentos, com base em critérios de risco;
– Fase pré-investigatória: a UIF e o DCIAP dispõem de amplos poderes de análise e de averiguação não apenas quanto a operações comunicadas, mas igualmente quanto a quaisquer outras operações que, por qualquer motivo, apresentem indicadores de suspeição que tenham chegado ao seu conhecimento (destacando-se aqui os amplos poderes conferidos ao DCIAP em sede de ações de prevenção);
– Fase de investigação: está a cargo das autoridades judiciárias competentes para o inquérito criminal, com a coadjuvação das autoridades policiais.
Não existindo lacunas ou dúvidas quanto à esfera de atuação dos diversos intervenientes no circuito de prevenção e combate ao BCFT, relembra-se que a eficácia do sistema depende, em grande medida e tal como reconhecido nas Orientações Conjuntas, da intensificação dos mecanismos de cooperação e de troca de informação entre os atores públicos das diversas fases, conferindo o artigo 124.º da Lei n.º 83/2017 uma base legal inusitadamente generosa para que tal possa suceder.
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NOTAS:
1. Autoridade Bancária Europeia, Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados e Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma. Observa-se, no entanto, que, com a publicação do Regulamento (UE) 2019/2175 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro, operou-se a concentração na Autoridade Bancária Europeia das competências em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo que se encontravam dispersas pelas três Autoridades Europeias de Supervisão.
2. Orientações emitidas em cumprimento do mandato consignado no n.º 10 do artigo 48.º da Diretiva (UE) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo. Disponíveis para consulta em https://eba.europa.eu/regulation-and-policy/anti-money-laundering-and-e-money/guidelines-on-risk-based-supervision .
3. O disposto não obsta à comunicação de operações suspeitas pelas autoridades setoriais, em observância do disposto no artigo 104.º da Lei n.º 83/2017, sempre que, no exercício das suas funções, identifiquem possíveis suspeitas de BCFT que não tenham sido comunicadas pelas entidades obrigadas. Na mesma linha, a alínea d) do n.º 1 do artigo 95.º da lei habilita aquelas autoridades a sancionarem a posteriori quaisquer incumprimentos dos deveres preventivos a respeito de uma dada operação que não tenha sido adequadamente examinada e/ou comunicada pelas entidades obrigadas.
4. A promoção ou realização de ações de prevenção, neste domínio, pelo DCIAP, foi confirmada pelo n.º 4 do artigo 58.º do novo Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto).
5. Lei essa que atribui também à Polícia Judiciária a competência para a realização de ações de prevenção, incluindo quanto a infrações económico-financeiras.