Administração Pública deve dar o exemplo de boas práticas ambientais

Os agentes económicos devem assumir um papel fundamentar na mudança de paradigma no ambiente - afirma Tiago de Melo Cartaxo. Em entrevista à “Vida Judiciária” o professor da Nova School of Law refere que nos Estados Unidos o direito foi influenciado pelos movimentos de empresas responsáveis e pode contribuir para a mudança de mentalidades.
Em sua opinião, nas matérias ambientais a monitorização é um elemento crítico para as tomadas de decisão.
Em sua opinião, nas matérias ambientais a monitorização é um elemento crítico para as tomadas de decisão.
Sendo a preocupação com o meio ambiente um dos principais temas da atualidade e com a crescente perceção pública das consequências de uma irreversível degradação ambiental, considera necessário o surgimento de novas políticas públicas de combate a este fenómeno ou considera as existentes atualmente como suficientes para fazer frente a esta problemática – ainda que não eficazmente implementadas?
O ambiente e, de forma mais crescente, as alterações climáticas são temas transversais a toda a sociedade e a todos os setores da atividade humana. Neste sentido, tanto as políticas públicas como direito deverão sempre procurar dar respostas tempestivas aos problemas sempre novos que vão surgindo relativamente a esta matéria. Quer isto dizer que os decisores e os legisladores têm vindo a demonstrar preocupação para responder as necessidades da proteção do ambiente e da ação climática com legislação e medidas políticas concretas nas mais variadas áreas, mas ficando ainda aquém da urgência que esta temática exige.
Numa perspetiva internacional, o Acordo de Paris no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas pode ser um exemplo disso mesmo. Mas no quadro da União Europeia, a adoção do Green Deal (ou Pacto Ecológico Europeu) e as correspondentes políticas e alterações legislativas, como a Lei do Clima ou mesmo a proposta de um novo regulamento sobre baterias, acabam por ser uma concretização desta assunção de responsabilidades em matéria ambiental e climática que não é despicienda. A própria aposta nacional em energias renováveis e limpas, os compromissos ambiciosos para a neutralidade carbónica são também boas notícias, tal como a aprovação de uma Lei de Bases do Clima. No entanto, quem trabalha na área do ambiente já está habituado a ver muitas boas intenções e grandes dificuldades na implementação e no enforcement. É, aliás, este o motivo pelo qual tenho vindo a pugnar por uma aposta num Direito do Ambiente adaptável – aquilo a que no sistema anglo-saxónico tem vindo a ficar conhecido como adaptive law –, como uma doutrina jurídica que acompanha e responde, de maneira mais perspicaz, às rápidas mudanças nos diferentes sistemas socioecológicos. Um sistema mais flexível na resposta aos problemas, baseado na monitorização da aplicação do direito e das políticas publicas, com decisões rápidas mas informadas e e envolvimento e responsabilização de todos os stakeholders, públicos e privados.
Neste campo legislativo ambiental, em 2015 a União Europeia assinou o Acordo de Paris que visa limitar o aquecimento global a 1,5°C e, mais tarde, assumiu, também, através do Pacto Ecológico Europeu, o compromisso de se tornar no primeiro continente a atingir a neutralidade climática até 2050. Considera que as medidas explanadas são bastantes para alcançar os ditos objetivos? E, mais, na sua perspectiva, estão estes diplomas a ser efetiva e adequadamente aplicados em termos práticos?
Mais uma vez, aqui, todas as medidas são poucas para travar a emergência climática que o Planeta e a Humanidade enfrentam. A verdade é que o Planeta cá ficará para contar a história. Já quanto aos seres humanos, isso apenas depende da nossa ação ou omissão.
O Green Deal afirma-se como uma estratégia ambiciosa, mas cuja implementação dependerá da vontade das instituições e dos Estados-Membros. Exemplo disso mesmo foi a dificuldade em chegar a um acordo entre todos os Estados (com interesses bastante industriais diferentes) relativamente ao texto final do novo regulamento sobre baterias que, finalmente, recebeu o voto favorável do Parlamento Europeu. Este regulamento, que como qualquer outro será diretamente aplicável no ordenamento jurídico dos Estados-Membros, representa um passo extremamente relevante na transição para as energias limpas, mas impõe um essencial enfoque em todo o ciclo de vida dos produtos e na responsabilidade alargado do produtor. Portanto, os agentes económicos assumirão um papel fundamental nesta mudança de paradigma.
As empresas, num prisma corporativo, são possivelmente os mais estratégicos intervenientes para liderar esta jornada focada no ambiente e sustentabilidade. Que políticas governamentais podem e/ou devem ser aplicadas às mesmas, de forma a que estas se foquem, também, num desenvolvimento sustentável na prossecução dos seus objectivos económicos?
As empresas são atores essenciais e privilegiados nesta mudança necessária. E tem de ser vistas como parceiros das entidades publicas, das famílias e dos valores ambientais a proteger. Não há outra solução.
Uma importante alteração de paradigma pode vir a ser a aprovação da proposta de diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade. A Comissão Europeia entende que, havendo mais responsabilidade por parte das empresas no desenvolvimento das suas atividades, a transição ecológica será mais fácil e assim proteger-se-ão também os direitos humanos na Europa e noutras regiões do mundo. Em causa está uma produção mais sustentável e responsável, a promoção do comércio justo, mais informação aos consumidores.
Já percebemos, por exemplo, que o recurso a uma multiplicidade de rótulos verdes, todos eles diferentes e com procedimentos e regras totalmente díspares, apenas confundem os consumidores e dão lugar ao chamado greenwashing, que apenas dá uma aparência de que as empresas são sustentáveis quando, na verdade, não o são.
Precisamos de regras iguais para todos – naturalmente com pequenas diferenças para as pequenas e medias empresas –, que promovam o respeito pelo ambiente e a economia circular, a responsabilização social na relação com os trabalhadores e a transparência para com os consumidores. E aqui o direito tem ainda um longo caminho a percorrer e exige-se aos legisladores e decisores públicos mais ação nesta matéria. No entanto, apenas com o envolvimento de todos os atores económicos, públicos e sociais será transformar paradigmas.
A passagem para a economia circular, por exemplo, que implica uma restruturação total do sistema produtivo, é um caso de que só será possível fazer a transição se todos os atores o quiserem fazer.
É possível ter uma mentalidade de integridade e transparência, também ao nível das preocupações ambientais, nesses sectores produtivos e empresariais?
Totalmente. Começamos a ver, pelo mundo fora, movimentos de empresas – e grandes empresas – que já compreenderam que são exatamente elas os elementos-chave, ao lado das famílias, para esta grande transição que o mundo precisa. A questão fulcral é que uma empresa de grande dimensão consome substancialmente muito mais energia e emite muito mais gases com efeito de estufa que dezenas e dezenas de famílias juntas. E como digo, movimentos mundiais como o das B Corporations, que em março deste ano já contava com quase 5000 e que pretendem ir mais além da simples implementação dos planos ESG, são exemplos que as empresas já estão a fazer parte desta mudança e, mais importante ainda, têm vontade de o fazer.
Curiosamente, nos Estados Unidos, mais de 30 estados já adotaram legislação influenciada pelas normas do movimento B Corp. Em rigor, intitularam-nas leis de Benefit Corporation, que exigem três atributos jurídicos: accountability, transparência e propósitos/objetivos claros. Este é realmente um caso em que o direito foi influenciado pelos movimentos de empresas responsáveis e pode agora contribuir para a mudança de mentalidades, garantindo que esta é uma transição que se faz em conjunto, entre setores publico, privado e os próprios consumidores, que estarão cada vez mais informados relativamente às características dos produtos que pretendem adquirir.
Num mundo gradualmente e, cada vez mais, tecnológico, poderá essa aposta tecnológica surgir como um forte aliado na caminhada por uma maior garantia de sustentabilidade e preocupação e resolução de problemas ambientais? Em que sentido?
Sem dúvida. A realidade das cidades inteligentes, com uma governação baseada na utilização de sensores e das chamadas ICTs, já permite processos e procedimentos cada vez mais bem-informados, atualizados e responsivos – a chamada data-driven regulation. Nas matérias ambientais, em especial perante a emergência climática que hoje vivemos, a monitorização é um elemento critico para as tomadas de decisão e também para a aplicação do direito e a sua própria atualização. Nos dias de hoje, não é possível analisar um facto jurídico com relevância ambiental (ou até outra) sem o mínimo recurso às tecnologias.
Por isso mesmo insisto na necessidade de dotar o Direito do Ambiente de instrumentos mais adaptáveis, como a necessidade de recurso à monitorização, à informação e transparência, à participação publica, ao envolvimento de todos os stakeholders, públicos e privados sem exceção, e a mais mecanismos de soft law. Perante uma complexidade de diferentes sistemas ecológicos e sociais que sofrem alterações continuas, vivemos claramente num mundo em que o big data, a internet of things e a analítica preditiva têm de estar no centro da governação dos territórios e das comunidades, mas também na criação e na aplicação do direito nestas mesmas realidades.
A nível nacional, uma das principais medidas de mitigação dos transtornos climáticos sofridos incide sobretudo nas áreas da mobilidade e dos transportes, pela aprovação do conjunto de medidas que reforçaram a prioridade ao Ambiente a 5 de junho de 2019. Passados quase 3 anos, considera que esta foi uma medida que acarretou melhorias significativas? O que mais poderá ser feito neste aspecto?
Na verdade, em 2019, Portugal adotou o seu Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050), enquanto estratégia de longo prazo para a economia portuguesa, com objetivos mais ou menos concretos para 2050, e apresentou-o também às Nações Unidas, no âmbito das suas obrigações ao abrigo da Convenção-Quadro para as Alterações Climáticas e subsequentes instrumentos internacionais. Esta estratégia procura adaptar os diferentes sistemas da economia, como o electroprodutor ou a mobilidade, passando pela indústria, a agricultura ou os edifícios. No entanto, importa mencionar que realidades como os transportes ou a eficiência energética dos edifícios ainda precisam de muito mais apoios por parte do Estado e de legislação mais inovadora e eficaz que promova uma verdadeira mudança de paradigma.
Relativamente ao sector dos transportes, não se compreende como pode o Estado querer uma transição energética rápida sem reformular de vez todas as frotas de transportes públicos e acabar com o recurso à combustão. No mesmo sentido, a quantidade de transportes públicos colocada à disposição dos cidadãos fica ainda muito aquém do necessário para persuadir os utentes a deixar o automóvel. Por outro lado, o apoio à aquisição de automóveis elétricos continua a ser extremamente reduzido para um país que quer estar na vanguarda de uma transição energética que se quer justa e que chegue a todos os sectores da sociedade. O mesmo acontece relativamente à necessidade de apoios à aquisição de bicicletas elétricas, considerando a impossibilidade de recorrer à bicicleta convencional e muitas das nossas cidades e vilas.
No rumo da pergunta anterior, vivemos atualmente a tendência progressiva de substituição do motor a combustão pelo motor elétrico, muito incentivada tanto pelas empresas responsáveis no sector como pela própria consciência dos consumidores. Considera que o nosso país está devidamente preparado e munido, tanto legislativa como logisticamente, para esta drástica mudança?
Na minha perspetiva, o país está preparado em termos de mentalidade. E esse aspeto, por vezes, é até o mais complicado para colocar mãos à obra. Segundo um estudo recente do Banco Europeu de Investimento, Portugal é o segundo país da União Europeia, depois de Malta, em que os cidadãos mais consideram que a transição verde vai melhorar a sua qualidade de vida. E a maioria dos cidadãos gostaria de poder ter acesso à mobilidade elétrica, mas não consegue porque ainda é muito cara. Como já disse, a esta mudança tem necessariamente de partir do Estado. Há que renovar as frotas, mas também dar mais incentivos às famílias e às empresas para fazer esta transição. Continua a haver sérias dúvidas relativamente à longevidade das baterias, em especial porque tudo é bastante recente e optar pela mobilidade elétrica é ainda um risco para os particulares, porque não sabem quanto será ao certo o seu investimento a longo prazo.
Outra questão prende-se com a mobilidade nas cidades e vilas e tem a ver com saber se sequer valerá a pena sermos proprietários de um automóvel, nos dias de hoje, numa cidade ou vila que deveria ser capaz de nos disponibilizar um serviço de transportes públicos robusto, económico (ou até gratuito, como já acontece em alguns concelhos portugueses) e, acima de tudo, limpo. Não será para isso que pagamos impostos (sejam eles verdes ou não)? Veja-se o caso do centro de Londres, onde sai muito caro ter um automóvel e o serviço público de transportes é de qualidade e amigo do ambiente.
Mas atenção: que não se comece a construir a casa pelo telhado, como sempre se tem feito em Portugal. Primeiro melhoram-se os serviços de transportes e só depois se pode impor medidas aos automobilistas, para os convencer a fazer a transição.
Considerando que o problema da sustentabilidade ambiental se vem intensificando e, portanto, é necessário um acompanhamento legislativo célere e eficaz, será a aposta em parcerias público-privadas uma medida, nestes termos, eficiente, e possivelmente aliviadora da sobrecarga no poder público? Em que termos deverão essas parcerias ser feitas/executadas?
Não me choca nada qualquer parceria público-privada, desde que o risco não corra apenas do lado do Estado, ao contrário do que aconteceu nas últimas décadas em Portugal em vários sectores.
Como já o disse, o envolvimento dos mais diversos stakeholders nos procedimentos decisórios e até legislativos será o único caminho para melhorar a nossa capacidade, enquanto sociedade mas também enquanto sistemas jurídicos, de adaptação tanto às alterações climáticas como às diversas mudanças normais que os sistemas socioecológicos vão sofrendo ao longo do tempo.
É certo que o ambiente e o clima são assuntos com os quais não podemos de todo brincar. Por isso mesmo, entregar determinadas funções a agentes que atuam no mercado é algo que deverá sempre ser feito com o máximo cuidado. Porém, não tendo o Estado capacidade para o fazer, não vejo motivo para não permitir que os privados o façam, no lugar do sector público, mas sempre ao serviço do público. Quer isto dizer – e aqui entra o direito – que devem ser abertos concursos públicos e definidos cadernos de encargos claros e com graves sanções para quem não os cumprir. Se for assim, não vejo porque não.
Algo que continua a faltar no nosso sistema é a implementação de um verdadeiro equilíbrio entre os momentos do licenciamento ou da autorização e as fases de fiscalização, uma vez que estas últimas são sempre esquecidas pela nossa Administração Pública, sempre com a desculpa na falta de meios humanos. Ou seja, temos vindo a simplificar os procedimentos de licenciamento ou de autorização, mas esquecemos os momentos seguintes. Aqui, a entrada de empresas de auditoria ou fiscalização (sempre com termos de referência bem definidos) poderia representar uma enorme mais-valia em matérias comos as da monitorização ou pós-avaliação, em especial no que concerne às áreas ambientais, que por vezes exigem estudos morosos e com grande especificidade técnica.
Tendo em vista a importância da sustentabilidade e da proteção ambiental para as presentes e futuras gerações, considera que a sua consideração como princípio e direito constitucional anda se debate com um certo carácter errático, sendo necessária a sua operacionalização?
O nosso atual artigo 66º da Constituição parece-me ser suficiente para que tanto o Estado como os particulares o entendam como uma obrigação de todos. Nos termos do nº 1, o Direito ao Ambiente corresponde também a um dever. Por outro lado, a alínea d) do nº 2 reforça a promoção do princípio da solidariedade entre gerações. Podemos sempre questionar-nos se vale a pena escrever mais, mas diria que isso é um síndrome dos juristas e legisladores latinos, que acreditam sempre que é na letra da lei que está o problema.
Não o é certamente. Costumo dar o exemplo do sistema dinamarquês, que não tem qualquer previsão ambiental na respetiva constituição e, no entanto, a Dinamarca e uma referência em sustentabilidade e proteção do ambiente. Por outro lado, Portugal consagra no artigo 65º da sua Constituição o Direito a Habitação e há tanta gente a viver na rua.
Estamos claramente perante um problema de operacionalização. Mas acredito que as novidades tanto jurídicas como políticas e sociais na Europa e no mundo em matéria de justiça climática estão a contribuir para uma mudança na perceção de quem aprova e aplica a lei. A título de exemplo, vale a pena referir o caso Urgenda, nos Países Baixos, em que o tribunal condenou em 2019 o Estado neerlandês a melhorar as suas políticas climáticas, no cumprimento das obrigações do Acordo de Paris, a ação intentada pelos jovens portugueses no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contra 33 estados, incluindo Portugal.
Podemos, por isso, estar certos de que as mentalidades estão a mudar na área da justiça ambiental intergeracional, da justiça climática ou mesmo do Direito a um Futuro Verde, como lhe chama o norte-americano Richard Hiskes.
No conceito da sustentabilidade cabem diversas aceções, nomeadamente, sustentabilidade económica, a sustentabilidade ecológica, a sustentabilidade espacial, a sustentabilidade social e a sustentabilidade político-cultural. É da opinião que o direito internacional de sustentabilidade deveria ser considerado um ramo autónomo do direito internacional do meio ambiente? Que implicações poderiam decorrer de tal?
Há autores que defendem a autonomização de um Direito Humano ao Desenvolvimento Sustentável. Na minha perspetiva, devo dizer que sou mais a favor do reconhecimento de um Direito Humano a um Ambiente Limpo, Saudável e Sustentável, como foi recentemente, no final de 2021, aprovado pelo Conselho dos Direitos Humanos nas Nações Unidas. Esta é, na verdade, uma aceção mais próxima daquela sugerida pela nossa Constituição.
Contudo, o reconhecimento de um direito humano nesta matéria não implica necessariamente a autonomização de um ramo específico no Direito Internacional. Na verdade, a sustentabilidade deve ser, sim, uma abordagem transversal a toda a atividade humana e, por isso mesmo, a opção por uma autonomização poderia conduzir a um acantonamento da sustentabilidade apenas num pequeno nicho do Direito Internacional.
Outra questão que tem vindo a ser discutida é, aliás, a utilização dos termos “sustentabilidade” ou “sustentável” como buzzword para tudo e mais alguma coisa. Por isso mesmo, alguma parte da doutrina tem vindo a criticar a narrativa da sustentabilidade e a sugerir outras perspetivas, como é o caso da resiliência socioecológica, que pretende dotar os diferentes sistemas sociais e ecológicos da capacidade de adaptação as perturbações externas que, por exemplo, as alterações climáticas podem provocar.
Em suma, é minha convicção que a sustentabilidade tem vindo a ser bem tratada tanto pelo Direito Internacional Geral como pelo Direito Internacional do Ambiente, ainda que haja um longo caminho a percorrer para a implementar de forma concreta nas suas mais diversas vertentes. A título de exemplo, aguardamos que a revisão dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, incluídos na Agenda 2030 das Nações Unidas, venha a incluir os limites planetários sugeridos por Johan Rockström.
Sendo a crise ecológica uma problemática internacional, que não conhece fronteiras, considera que as medidas de cooperação internacional entre estados são, neste campo específico, suficientes? Que mudanças apontaria no caminho da sua melhoria?
Uma vez que o que acontece numa parte do mundo tem, necessariamente, consequências do outro lado, a crise ecológica e a emergência climática são, na realidade, problemas globais que devem ser tratados de forma internacional. Neste sentido, as Nações Unidas têm vindo a desenvolver o seu trabalho, em especial através do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, determinando a agenda ambiental internacional e promovendo uma cooperação entre os membros da ONU nesta matéria. Por outro lado, também a União Europeia tem apoiado, através dos seus sistemas de cooperação, os países em desenvolvimento no desenho e implementação de novos instrumentos jurídicos e políticos para a proteção do ambiente e a adaptação as alterações climáticas. Neste ponto, as universidades portuguesas têm também vindo a dar contributos importantes na cooperação com os países de língua oficial portuguesa, em especial nas áreas da investigação, consultoria e formação.
Se é preciso fazer mais? É certamente. Torna-se essencial que as autoridades responsáveis pela cooperação e respetivo financiamento coloquem a proteção do ambiente e a adaptação às alterações climáticas, mais ainda do que como eixos estratégicos, como prioridades essenciais da sua missão.
Existe uma necessidade indispensável de construção de uma tranversal “consciência ecológica” ou “consciência sustentável”. É da opinião que se deveria apostar na introdução de cadeiras ou módulos dedicados específica e concretamente a estas vertentes ambiental/e de sustentabilidade, ao longo dos programas de formação superior na área do direito (e outras)?
Totalmente. Continuo a não compreender como, na terceira década do século XXI, podem existir licenciaturas em direito que não incluam o Direito do Ambiente como uma disciplina ou módulo obrigatório. E além do Direito do Ambiente, as demais disciplinas terão de incluir referências claras ao ambiente e à sustentabilidade. Longe vai até o tempo em que as questões ambientais eram apenas do domínio do Direito Público. Hoje falamos em impostos verdes, economia circular, mercados de emissões, green bonds, cláusulas contratuais verdes ou climáticas… Quem não se quiser atualizar sobre estes temas, vai ficar fora do mercado. Por outro lado, o Direito do Ambiente é também essencial para as licenciaturas de outras áreas do saber, como as engenharias, arquitetura, biologia, medicina veterinária (entre outras). Mais cedo ou mais tarde, depois do curso e na vida prática, estes profissionais vão precisar de entender diplomas legais que se aplicam às suas atividades.
O Direito do Ambiente é, hoje, sem dúvida, o mais transversal dos ramos do Direito. Está na hora das nossas universidades o reconhecerem. Quem não o fizer, será claramente ultrapassado.
Considera que a pandemia poderá ter tido um forte impacto na forma como abordamos o tema do direito ambiental e sustentabilidade? Em que termos e medidas?
Reconheço que a pandemia teve um impacto bastante forte na maneira como olhamos para o ambiente. Apenas receio que tenha sido sol de pouca dura. Se repararmos, passaram a fazer-se menos viagens de avião, os movimentos pendulares foram reduzidos a um mínimo antes impensável, em algumas cidades, como Veneza, as águas ficaram mais limpas. No entanto, estamos agora a regressar a muitos dos comportamentos que tínhamos antes da pandemia. Na maioria dos casos, isso é positivo, claro. Mas no que diz respeito a proteção do ambiente, é problemático.
Acredito talvez que os grandes decisores políticos internacionais – e também muitas empresas transnacionais – tenham compreendido que a redução de algumas atividades ou a adoção de novas medidas ou tecnologias mais sustentáveis possam fazer a diferença. Hoje vemos grandes empresas como a Amazon, Ikea ou a Unilever a assumirem a responsabilidade de transformarem os seus sistemas de transporte em net-zero até 2040. Vemos também grandes companhias aéreas, que viram as suas frotas totalmente paradas durante o pico da pandemia, a assumir compromissos hipocarbónicos. Depois da Assembleia do PNUA de Nairobi deste ano, aguarda-se agora também por um tratado internacional para a redução dos plásticos…
Tudo isto acaba por ser positivo para o ambiente. Mas, infelizmente, ainda não é ainda suficiente. Faltam-nos mais compromissos sérios e efetivos, com datas especificas e o mais breve possível.
Qual considera ser o peso e importância do Direito Público na resolução de problemas ambientais, protecção do Ambiente e desenvolvimento sustentável? Porquê?
O Estado e a Administração Pública desempenham, neste campo, um papel essencial. O Estado porque é ele, enquanto ator por excelência do Direito Internacional, que assume os compromissos com os demais membros da comunidade internacional e, por outro lado, tem o monopólio (ou quase) da definição das fontes do direito. A Administração Pública pode mais facilmente implementar e dar o exemplo de como devem os particulares e, em especial, os agentes económicos agir na proteção do ambiente. Vale a pena mencionar aqui a relevância da aposta na contratação pública verde e circular, mas também na implementação de medidas mais concretas como a renovação de frotas amigas do ambiente ou as opções em matéria de energias renováveis e limpas, sem esquecer o papel de licenciador e fiscalizador. É um mundo tudo aquilo que o Estado e a sua Administração Pública podem fazer pelo ambiente e pela sustentabilidade. No entanto, os cidadãos, as famílias e mormente as empresas, que são quem mais polui, não podem ficar de fora em todo este processo. Por isso mesmo, o Direito Público e talvez espaço por excelência para a resolução dos problemas ambientais, mas cada vez mais o Direito Privado começa a ganhar terreno, porque, como já o disse, a necessidade de introdução de cláusulas ambientais em contratos entre sociedades comerciais vai fazer cada vez mais parte do dia a dia dos juristas.
Na sua opinião, deverá o ordenamento do território andar de “mãos-dadas” com o direito do ambiente? Em que sentido e medida poderá um afectar o outro?
Não pode haver dúvidas relativamente a isso. O ordenamento do território nunca poderá ser afastado do Direito do Ambiente. Quando fazemos opções de gestão territorial, na maioria das vezes poderemos estar a prejudicar valores ambientais. Por esse mesmo motivo, as minhas disciplinas de Direito do Ambiente fazem sempre uma referência ao ordenamento do território e ao urbanismo. No mesmo sentido, também nas orgânicas dos governos é um erro separar o ambiente do ordenamento do território. A título de exemplo, não faz sentido falarmos da Reserva Ecológica Nacional e essas questões não serem resolvidas dentro do Ministério do Ambiente, ou discutirmos a localização de um aldeamento turístico próximo de uma área protegida e termos ministérios a “chutar” pareceres e decisões contraditórias de um lado para o outro.
Na minha perspetiva, o ordenamento do território é também um sistema de instrumentos de gestão que serve para proteger o ambiente (a par da saúde humana e da prevenção de riscos para pessoas e bens).
Neste campo legislativo ambiental, foi em 2015 aprovada uma resolução de ministros que estabeleceu uma estratégia para atingir o objetivo das cidades sustentáveis para 2020. Qual a análise que faz deste diploma e da sua eficácia?
A Estratégia Cidades Sustentáveis 2020 acompanhou um conjunto internacional e europeu de agendas, com objetivos bastante ambiciosos e que procurava dar resposta às necessidades de financiamento que as cidades e centros urbanos portugueses sentiam na altura. O diploma foi resultado de investigação e trabalho científicos bastante positivos, que aliavam o ambiente à economia, tecnologia e inovação, bem como à saúde. Procurou fazer-se uma ligação há muito necessária com os eixos estratégicos do quadro de financiamento europeu – à época PORTUGAL 2020 –, criando princípios, prioridades e ações bastante interessantes que poderiam ter sido levadas em consideração por sucessivos legisladores e políticos. Infelizmente, a estratégia sofreu as consequências habituais do excesso de produção legislativa português. A legislação e as políticas que se seguiram acabaram por dar pouca atenção a esta estratégia, ainda que os municípios a tenham valorizado bastante e tenha servido como base para algumas opções e medidas a nível local.
Quer isto dizer que, muitas vezes, os governos aprovam programas, planos e estratégias, mas é essencial que as mantenham em consideração nas suas decisões seguintes. Então quando os governos mudam, a questão ainda fica mais complicada.
Analisando aquilo que são, a nível nacional, as medidas implementadas sobre a produção e gestão de resíduos urbanos, como considera que tal poderá auxiliar na prossecução de uma efectiva economia circular? Acha presumível que, a médio ou longo prazo, possamos vir a ter as denominadas “smart cities”?
Portugal tem vindo a fazer um caminho bastante positivo que que respeita à gestão de resíduos urbanos. Temos empresas que são referencias a nível europeu e até internacional e somos, muitas vezes, apresentados como casos de estudo em trabalhos de investigação pelo mundo fora. Em especial, a forma como vários municípios têm implementado soluções disruptivas e inteligentes, com recurso às tecnologias da informação, representa exemplos interessante a seguir.
Contudo, a gestão dos resíduos e a transição para a economia circular exigem uma enorme mudança de paradigma e o envolvimento de que produz esses mesmos resíduos. Um sistema circular é aquele em que não há resíduos. Isso implica um exercício de prevenção na criação ou produção do resíduo. Portanto, passar de um sistema linear para um sistema circular exige toda uma alteração dos sistemas de produção. É possível fazê-lo? Claro que sim. Mas só, mais uma vez, com o envolvimento de todos os stakeholders, públicos e privados, e aqui também o direito assume um papel de extrema relevância, porque pode definir os limites e prazos credíveis e razoáveis para esta mesma transição.
Quando a termos smart cities, como disse, os municípios estão a fazer esse caminho, em muitos casos não da forma integrada como seria preferível. Ora apostam numa solução inteligente para os resíduos, ora numa mudança para sistemas de iluminação LED. O preferível seria adotarem um plano estratégico e integrado que transformasse toda a cidade numa verdadeira smart city, em todos os seus sectores. Isso leva tempo, mas será a única forma de transformar as nossas cidades e vilas em espaços onde a governação será exercida de forma integrada e eficiente, com recurso às chamadas ICTs, a favor da qualidade de vida das pessoas, apostando no potencial ambiental e promovendo a economia.
Importa, no entanto, mencionar que Associação Nacional dos Municípios Portugueses desenvolveu, nos últimos anos, em conjunto com a Universidade NOVA de Lisboa, um trabalho louvável nesta matéria, promovendo as ferramentas e partilhando boas práticas. Temos, portanto, os instrumentos, temos as pessoas e temos a vontade. Falta juntar tudo e colocar em prática de uma maneira integrada.