ONU é uma potencial lesada da guerra entre Rússia e Ucrânia
É importante definir um quadro jurídico que assegure o respeito pelos direitos fundamentais, antes do reforço de um quadro sancionatório penal ou um reforço das despesas e ação militares. Esta é a opinião de Pedro Trovão do Rosário, doutor em Direito, investigador do Ratio Legis – UAL, professor universitário e advogado.
“Temo que a ONU seja uma das potenciais lesadas da guerra entre Rússia e Ucrânia”, acrescenta.
“Temo que a ONU seja uma das potenciais lesadas da guerra entre Rússia e Ucrânia”, acrescenta.
Sendo impossível fugir à situação geopolítica actual, que consequências poderá a situação de conflito entre a Rússia e Ucrânia trazer a nível das relações diplomáticas na sociedade internacional?
As consequências para a diplomacia são imensas, ponderando-se desde a posição da República Popular da China até ao futuro desenvolvimento da União Europeia ou da NATO, tendo-se que verificar a capacidade de afirmação de diversos atores num momento de fragilização de outras instituições como a própria Organização das Nações Unidas e o seu Conselho de Segurança. A própria União Europeia, com a intenção de alargamento à Ucrânia, coloca em tensão os seus equilíbrios internos, mercê da dimensão do Estado candidato, conforme aliás ocorreu no passado aquando da entrada da Polónia. Vai ser um teste que tipicamente se coloca às Confederações de Estados, mais tarde ou mais cedo, apurando-se se os poderes e as vontades estaduais se adequarão à vontade ou expressão dos órgãos representativos do coletivo. Assistimos, a par, ao habitual cuidado ou tacticismo da República Popular da China, a qual aproveitará – creio – o momento para uma maior afirmação no plano internacional.
No âmbito do Direito Internacional, considera que as acções de ocupação e invasão propugnadas pela Federação Russa poderão ser responsabilizadas criminalmente?
Sê-lo-ão. No entanto, tenhamos presente que em ambos os campos estarão a ser praticados crimes, assumindo-se, no entanto, com clareza que a invasão de um Estado por outro nos termos que nos foram dados verificar é objeto de imediata censura. A invasão russa da Ucrânia desencadeou uma inadmissível crise humanitária, com violação flagrante de direitos humanos e a deslocação forçada de milhares de pessoas. Com mortes e destruição de bens, com um prejuízo global percebido em todos os continentes. Sabemos que as autoridades ucranianas suscitaram logo no inicio da guerra a investigação da ação da Rússia pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) pela prática de atos que serão enquadráveis como crimes contra a humanidade e crimes de guerra, envolvendo ataques indiscriminados a zonas habitacionais, em especial por estarem em causa hospitais, escolas e orfanatos. O próprio uso de armas proibidas, como bombas de fragmentação, bombas de estilhaços e bombas de vácuo, constitui crime de guerra, pois “causam sofrimento inútil” ou atingem “indiscriminadamente” pessoas e bens. Tal, embora possamos verificar que os vitoriosos ficam habitualmente na história como os que tinham razão. Os tribunais que, ao longo do século XX e em especial após a Segunda Guerra Mundial procederam a julgamentos pela prática de crime de guerra, foram constituídos especificamente com esse propósito, “casuístico”, como o Tribunal Militar Internacional vs. Hermann Göring et al, vulgo “Tribunal de Nuremberga”. O TPI é o primeiro Tribunal Internacional permanente em matéria penal, baseado num tratado: o Estatuto de Roma de 1998.
Recorde-se que apenas em 1950 a Organização das Nações Unidas (O.N.U.) deu um primeiro passo no sentido da criação do que viria a ser o Tribunal Penal Internacional, seguido em 1973 da Resolução número XXVIII da O.N.U. (“Princípios da Cooperação Internacional na Identificação, Detenção, Extradição e Punição dos Culpados por Crimes contra a Humanidade”) na qual se afirmou um princípio de cooperação de todos os Estados para que os responsáveis por atos qualificados como crime fossem julgados e punidos.
No entanto, mesmo só sendo os seus Estatutos aprovados em 1998, foram-no com vinte e uma abstenções e os votos contra dos Estados Unidos da América, República Popular da China, Israel, Iraque, Líbia, entre outros. Mais, o Tribunal Penal Internacional iniciou as suas atividades oficialmente em julho de 2002, nos termos do artigo 3º do Estatuto de Roma, em Haia, nos Países Baixos.
Tal evidencia a dificuldade na futura responsabilização criminal num plano internacional, não se afastando a possibilidade de se vir a criar, como em Nuremberga ou em Tóquio, um Tribunal especial.
O Tribunal Penal Internacional tem na sua génese a capacidade de julgar pessoas singulares pela prática de crimes contra os direitos humanos. Posto isto, e para além de uma possível responsabilização da Federação Russa, considera ser possível a responsabilização singular de algum dos intervenientes políticos e/ou militares?
Efetivamente, ao contrário do Tribunal Internacional de Justiça, o qual tem jurisdição sobre os Estados, mas não em matéria sancionatória ou penal, o Tribunal Penal Internacional apenas julga pessoas singulares pela prática de crimes como crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, nos termos dos artigos 5º e 25º do Estatuto de Roma. Tal, em regra, quando os tribunais nacionais não conseguem ou pretendem atuar no âmbito do direito nacional sancionatório penal.
Alguns estados, a par da Federação Russa, têm vindo a manifestar a sua não aceitação da jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Poderá este não reconhecimento ser um obstáculo a um possível e eventual julgamento?
Resulta, entre outros, dos artigos 1º e 4º dos Estatutos do Tribunal Penal Internacional que só atuará quando os Estados aceitem fazer parte da jurisdição do Tribunal Penal Internacional e o acusado seja cidadão de um País-Parte ou de qualquer Estado que aceite a jurisdição do Tribunal e o crime tiver ocorrido em algum País-Parte. O crime só pode ser punido se os atos tiverem ocorrido após a adesão do aludido Estado à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Deste modo, não se afigura sequer provável de submissão de cidadãos russos à jurisdição do TPI.
É razoável falarmos em alcançar uma comunidade internacional baseada em respeito mútuo, uma vez que diversos países continuam a violar disposições constantes em tratados e convenções internacionais? E que caminho acha necessário efectuar para que esses comportamentos não prevaleçam?
Em poucas linhas, dificilmente o consigo apresentar e justificar. No âmbito da IACL/AIDC – International Association of Constitucional Law/ Association Internationale de Droit Constitutionnel, juntamente com outros membros, temos discutido o que possa ser encarado ainda como uma utopia: uma Constituição Mundial.
Vejamos: a globalização implica um Direito Internacional mais ativo, efetivo e competente em temas globais. Para tal, há que revisitar os paradigmas da norma jurídica constitucional, suscitando-se a sua evolução no sentido de uma “transnacionalização do constitucionalismo e dos textos clássicos: analisar os seus princípios, sistemas, regras e formas em direção à construção de uma constituição global.
Será utopia...? Bom... se “já temos” um Tribunal Penal Internacional... se se conseguiu (mesmo sem unanimidade e escassa efetividade) uma norma sancionatória ao arrepio de princípios constitucionais de tantos estados (como o português...), será absolutamente utópica a construção de uma Constituição Mundial? Esta reconhecerá ou conferirá, a par da sua efetividade, direitos, liberdade e garantias a serem impostas ao direito substantivo e adjetivo penal. Há que procurar a legitimação de poderes globais assentes democraticamente, respeitando os princípios de Estado de Direito democrático, evoluindo-se na organização e funcionamento de instituições globais constitucionalizadas, com a necessária harmonia com os princípios e direitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, esta robustecida com meios de tutela jurisdicional efetiva, que são necessários e resultam conforme se percebe pela relação entre a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Sim, porque a norma deve primeiramente afirmar os direitos fundamentais e, de imediato, encontrarmos um meio jurisdicional para a tutela dos mesmos.
A Nato, na cimeira de Madrid, aprovou o novo Conceito Estratégico para a acção da aliança, responsável pela reafirmação do compromisso de mais investimento na defesa e uma mudança profunda na estrutura de forças, nomeadamente o aumento de tropas em prontidão, mais equipamento pré-posicionado no flanco Leste e forças pré-atribuídas para defender aliados específicos. Considera fulcrais estas medidas que se pretendem implementar?
Quando vemos Estados como a Finlândia e a Suécia, países integrantes da União Europeia, a pretenderem aderir à NATO e a Ucrânia a pretender aderir à União Europeia, todos afirmando um mesmo propósito de integração para segurança, percebemos imediatamente que a ação da NATO e da União Europeia terá que ser ponderada em articulação. A NATO e a própria União Europeia, recordemos, estiveram até recentemente numa fase de crise interna ou mesmo existencial. Muito sumariamente, uma perante a posição dos Estados Unidos da América e reflexões associadas e outra perante o Brexit e a conduta da Polónia e da Hungria, entre outros fatores. Recorde-se simultaneamente que, no plano internacional como no europeu, a estratégia desde o 11 de setembro é essencialmente securitária. Assim, mais uma vez, percebemos quão importante é a definição de um quadro jurídico que assegure o respeito pelos direitos fundamentais, antes do reforço de um quadro sancionatório penal ou um reforço das despesas e ação militares. Algúem se recorda ainda das críticas principais à Turquia para não haver a sua integração na União Europeia, porque incompatível com os seus princípios...? com os direitos humanos...? mercê dos excessos militares da Turquia, membro da NATO? Estar-se-á, na hipótese colocada e sem a devida ponderação no que ao modelo de limitação da ação militar num quadro jurídico efetivo diz respeito, aparentemente a regressar ao modelo do período correspondente do século XX, o que seria um claro retrocesso civilizacional.
A Ucrânia, a par da União Europeia, não reconheceu a anexação da Crimeia e Sebastopol pela Federação Russa em 2014. À luz do Direito Internacional, como avalia essa anexação, à data, e como vê a presente invasão e ocupação militar russa? A comunidade internacional reagiu, como devia, em 2014? Poderia ter sido a actual invasão evitada?
O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) foi criado com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais. Esse objectivo tem sido posto em causa pelas recentes invasões, naquilo que tem sido considerada uma postura de passividade estratégica. Com o risco de escalada nuclear sempre presente, que medidas poderiam, ainda assim, ser tomadas de forma a proteger o direito internacional e paralelamente a integridade territorial das regiões em causa?
A dificuldade de efetividade das normas de Direito Internacional é patente, conforme acima referido.
Note-se que a Declaração dos Direitos Humanos, no seu artigo 3º, reconhece o direito à vida e, no entanto, dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, três têm pena de morte.
No preâmbulo da Carta das Nações Unidas lemos como compromisso dos “povos das Nações Unidas” praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos. Assim, cada vez mais se impõe uma nova visão sobre o Direito Internacional e a sua efetividade, no sentido do desenvolvimento de uma organização política da comunidade mundial. As alterações económicas, políticas, sociais, toda a globalização, impõem uma mudança de perspetiva sobre a sociedade mundial. Estes novos modelos políticos e jurídicos para a convivência em termos de comunidade global são crescentemente indispensáveis para dar resposta a problemas globais: crises económicas e financeiras, alterações climáticas, riscos de um desenvolvimento tecnológico sem regras ou padrões, os problemas dos direitos dos migrantes e refugiados, pandemias, etc.
A Rússia é um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Partindo da percepção de que o campo de acção daquele Conselho estará especialmente limitado neste quadro, qual poderá ser, ainda assim e na sua opinião, o contributo possível?
Num quadro geopolítico cada vez mais exigente, qual o papel da ONU e que medidas devem ser tomadas para preservar a sua ressonância como instrumento de equilíbrio político internacional?
Temo que a ONU seja, inclusivamente pelo que atrás se referiu, uma das potenciais lesadas da Guerra entre Rússia e Ucrânia. É claro que já antes da guerra e nos diversos continentes se assistiu a um recrudescimento de manifestações gregárias locais, em muito alimentadas por movimentos populistas contrários ao desenvolvimento do Estado de Direito Democrático e dos direitos fundamentais, assim contrários aos valores em que assenta a ONU. A ausência de capacidade desta, sempre condicionada historicamente por interesses conjunturais e locais, faz-se sentir agora de uma forma mais aguda junto de nós, europeus. No entanto, ao longo da sua existência, ainda recente, tem conseguido superar as crises com as quais se tem confrontado nos diversos continentes: mais recentemente e igualmente próximas de nós, as guerras no Magreb e ao longo do continente africano, a crise dos refugiados, crises económicas e financeiras, etc.
Concretamente, tendo em conta os acontecimentos de 2014, era possível antecipar a situação que se vive actualmente e implementar medidas preventivas? A entrada planeada da Ucrânia na União Europeia ou na NATO poderia ter funcionado como elemento dissuasor?
Devemos apreender com as outras áreas do conhecimento como, por mero exemplo, quando os economistas desenvolvem a “Teoria dos Jogos”. Devíamos primeiro analisar os demais intervenientes, em especial se os tomamos como adversários. A conduta omissiva de 2014, creio que hoje seja unânime, não foi a melhor estratégia e permite-nos hoje conhecer, avaliar e definir a conduta a ser tomada. Usando a expressão da vossa questão, desde a sua criação a função da NATO é essencialmente dissuasora.
Muito se tem falado de conceitos relativamente revivalistas: imperialismo russo, guerra fria, entre outros. De um ponto de vista geopolítico, considera que esta invasão ira exigir um reequacionamento perene dos agentes e forças políticas internacionais?
O Mapa da Europa do início do século XXI é, essencialmente, o do inicio do século XX. Note-se que há precisamente trinta anos falávamos sobre a Guerra da Bósnia.
Esta é também uma guerra que se tem vivido num plano digital, com acusações mútuas de manipulação de imagens e informação. Um dos campos mais pantanosos, nesse movimento, tem sido, precisamente, no tema das existência ou não de provas da prática de crimes de guerra pela Federação Russa. No seu entendimento, existem indícios suficientes da prática desses crimes e como pode a Federação Russa, à luz do Direito Internacional, ser, por eles, responsabilizada?
Perante a queixa das autoridades ucranianas, a Rússia começou a ser investigada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) pela prática de factos que podem constituir crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Esta investigação, a recolha de elementos, de depoimentos, será relevante no futuro para um futuro processo-crime, junto de um Tribunal a constituir, ou até de um Tribunal Ucraniano ou de um Tribunal Russo. Tal porque, como referi, o TPI “poderá exercer os seus poderes e funções, nos termos do” indicado “Estatuto, no território de qualquer Estado Parte e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado” (artigo 4º/2 dos Estatutos do TPI)... não sendo nem a Rússia, nem a Ucrânia “Estado parte” por não terem ratificado os Estatutos do TPI, muito embora em 2014 e 2015 a Ucrânia tenha atuado no sentido de o reconhecer. Há que ser realista e objetivo.
Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a ação, que a minha sensibilidade repugna; ou a ação, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu. Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.
Assim escreveu Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego” sob a pena de Bernardo Soares. Creio ficar assim clara a necessidade de separarmos os sonhos da realidade, por muito que esta repugne à nossa sensibilidade.