“Euro digital deverá ser considerado um criptoativo”
“Focando na comparação entre o euro digital e as stablecoins, parece-me óbvio que o primeiro tem a grande vantagem, face às segundas, de não apresentar qualquer risco, por ser emitido e controlado pelo banco central e por manter total e irrevogável paridade face ao euro fiduciário”, afirma José Brandão de Brito.
Vida Judiciária – Quais são os grandes desafios do Grupo de Contacto com o Mercado sobre o Euro Digital constituído pelo Banco de Portugal e do qual faz parte na qualidade de membro?
José Brandão de Brito – O Grupo de Contacto com o Mercado sobre o Euro Digital constituído pelo Banco de Portugal é um espaço de partilha e debate, em que o Banco de Portugal dá conta dos principais desenvolvimentos relativos ao projeto e os demais membros transmitem as respetivas preocupações quanto ao impacto que o eventual lançamento do euro digital possa vir a ter no setor financeiro, nomeadamente ao nível do sistema de pagamentos, da estabilidade financeira, da transmissão da política monetária e, também, da proteção ao consumidor. Dada a natureza do grupo de contacto, mais do que desafios, vale a pena destacar as oportunidades que advêm da riqueza que uma franca troca de ideias de participantes oriundos de quadrantes e sensibilidades diversas sempre aporta.
VJ – Quais as diferenças entre o euro digital e os criptoativos?
JBB – Em rigor, se o euro digital for criado sobre a tecnologia blockchain deverá ser considerado um criptoativo. Ainda assim, o euro digital teria diferenças muito importantes face a outras criptomoedas, desde logo por ser emitido pelo banco central e não por entidades privadas, frequentemente fora do escopo da regulação e supervisão financeira. A este propósito convirá referir que, para além das Central Bank Digital Currencies (CBDC), de que o euro digital seria um exemplo, existem dois grandes grupos de criptomoedas, a saber, as de livre flutuação no mercado, como a Bitcoin, e as stablecoins, que assumem o propósito de se manter o seu valor indexado a uma moeda fiduciária, como o euro ou o dólar americano.
VJ – Existem vantagens do euro digital em relação aos criptoativos, em particular as criptomoedas?
JBB – Focando na comparação entre o euro digital e as stablecoins, parece-me óbvio que o primeiro tem a grande vantagem, face às segundas, de não apresentar qualquer risco, por ser emitido e controlado pelo banco central e por manter total e irrevogável paridade face ao euro fiduciário. Em contraste, as stablecoins são emitidas por entidades privadas com base em mecanismos com grau de robustez variável, mas que nunca não estão livres dos riscos de mercado, de manipulação ou de fraude.
VJ – Considera que o papel internacional do euro pode ficar comprometido com a ausência do euro digital e a proliferação de outras moedas digitais?
JBB – O projeto do euro digital nasceu de a necessidade da área do euro oferecer uma alternativa ao crescimento exponencial de adoção dos criptoativos e ao posicionamento de outras grandes potências económicas, em particular a China, no espaço das CBDC. Na minha opinião, o vasto potencial da tecnologia blockchain implica que a ausência de euro digital certamente levaria muitos dos atuais utilizadores de euro (não-residentes, mas também residentes) a procurar alternativas no ecossistema cripto, quer seja de outras CBDC, quer seja de criptomoedas privadas, o que afetaria o papel internacional do euro e, potencialmente, também, a soberania monetária da Europa.
VJ – Quais são os benefícios do euro digital no mercado bancário, financeiro, societário e imobiliário?
JBB – Os benefícios do euro digital são inúmeros – os que se já se conseguem antecipar e os muitos outros que advirão da onda de inovação que necessariamente ocorrerá após a concretização do projeto. Em concreto, o espectro e densidade dos benefícios depende da solução técnica que for adotada pelo BCE. Em termos do sistema bancário, o principal impacto revelar-se-á ao nível dos pagamentos, que se deverão tornar mais rápidos, económicos e versáteis, com maior possibilidade de automação e personalização. No que respeita ao mercado de capitais, o euro digital deverá potenciar o movimento, que se espera revolucionário, de tokenização de ativos financeiros (ações, obrigações, etc.). Este fenómeno deverá ter materialização equivalente no mercado imobiliário, dado o enorme potencial de tokenização dos ativos deste segmento. Para as empresas, o euro digital abre todo um mundo de possibilidades ao nível de supply-chain-finance, com efeitos muito positivos na eficiência dos processos e, consequentemente, nos custos.
VJ – Qual a sua previsão para o euro digital se tornar uma realidade, em face do surgimento de moeda digital criada por outros bancos centrais?
JBB – O Banco Popular da China já criou o renminbi digital, cujo ecossistema está em franca expansão, não obstante os avanços e recuos próprios da fase inicial de adoção em que se encontra. A Reserva Federal dos EUA está a ponderar a criação de um dólar digital, como o está o Banco de Inglaterra. Neste contexto, o lançamento do euro digital afigura-se como altamente provável.
VJ – A utilização do euro digital comportará riscos para o sistema bancário? Se sim, quais e qual a forma de os minorar e evitar?
JBB – A introdução de moedas digitais de bancos centrais consiste numa alteração paradigmática, o que obrigatoriamente alterará a estrutura do mercado, criando ganhadores e perdedores relativos. Em particular, os bancos terão que demonstrar capacidade de adaptação a este novo paradigma monetário, sob pena de perderem terreno para outros operadores, sobretudo no domínio dos pagamentos. Por outro lado, poderá existir a tentação dos depositantes transferirem parte das suas poupanças para as wallets de euro digital, dado que será a forma de moeda mais segura de todas, o que poderia causar problemas de financiamento para os bancos.
VJ – Considera que a distribuição generalizada do euro digital será decisiva para a promoção da inclusão financeira pelos europeus?
JBB – Este aspeto da inclusão financeira é mais relevante para os países emergentes, uma vez que a taxa de bancarização da população adulta europeia é quase absoluta. Ainda assim, a redução de custos, o aumento da eficiência, de automação e personalização permitirão um usufruto mais profundo e abrangente dos serviços financeiros dos cidadãos europeus.
VJ – Como compatibilizar a existência de várias moedas digitais criadas pelos bancos centrais nas principais economias mundiais?
JBB – O Bank of International Settlements (BIS), que muitos consideram ser o banco central dos bancos centrais, já há algum tempo que advoga a criação de plataformas que permitam a interoperabilidade de CBDC de várias jurisdições, por forma a estender as vantagens das moedas digitais às transações internacionais, como pagamentos e transferências, trade finance, bem como a compensação associada à transação de ativos financeiros denominados em moedas diferentes.