“A maioria das questões da criptoeconomia já são abrangidas por regulação existente”
“O Instituto New Economy nasceu com uma missão bipartida: estabelecer Portugal como um hub líder da criptoeconomia mundial e desenvolver um ambiente regulatório e fiscal que suporte o crescimento desta indústria por cá”, esclarece Henrique Corrêa da Silva.
Vida Judiciária – O que é que se entende por “criptoeconomia”?
Henrique Corrêa da Silva – Entendemos que a criptoeconomia agrupa os vários sectores da indústria da Blockchain, criptoativos, e web3, como por exemplo DeFi e staking, NFTs e arte digital, o metaverso e videojogos, ReFi e DeSci, mas também outros projectos assentes em tecnologia distribuída, incluindo infraestrutura pública e identidade digital, assim como participantes centralizados, desde bolsas a empresas de análise e investigação. Ou seja, este termo é mais representativo do que apenas Blockchain ou web3, que dizem respeito a áreas muito específicas da indústria.
VJ – Qual o papel do Instituto New Economy (INE) na promoção e desenvolvimento da criptoeconomia em Portugal e que milestones se orgulham de ter conseguido?
HCS – O Instituto New Economy nasceu numas conversas de café que tinha regularmente com dois amigos meus estrangeiros, empresários de sucesso nesta área, que se mudaram para cá há uns anos. Nas nossas tertúlias percebi que havia um grande divórcio entra a realidade portuguesa “tradicional” e este novo mundo da criptoeconomia, ainda pouco conhecida no nosso país. Estes estrangeiros de alto gabarito, que escolheram viver cá, não se sentiam representados nas associações existentes na altura e queriam contribuir para o progresso de Portugal. Muitos me disseram que queriam investir mais no nosso país mas sentiam que a atitude do governo não revelava existir um plano ou visão para o sector e queriam contribuir para que melhor aproveitássemos esta oportunidade, que acreditamos ser tão única como a dos Descobrimentos foi. Quanto ao que já conseguimos alcançar, a agregação da comunidade na FACE e o respectivo trabalho com o governo, sobretudo relativamente ao novo regime de tributação dos criptoativos, mas não só, é uma das maiores fontes de orgulho. A nossa conferência anual, organizada no Museu do Oriente, também passou de um pequeno, mas bem participado, evento no ano passado, para uma conferência com 48 oradores de topo vindos de todo o mundo para discutir a regulação da criptoeconomia na Europa – o que representou um enorme sucesso. Em paralelo, o trabalho de formação e educação de empresas e organismos públicos que temos vindo a realizar de forma mais discreta também é muito importante, assim como o nosso esforço de relações públicas e publicações nos media, especialmente nesta altura de rescaldo do fiasco da FTX e outros participantes centralizados do mercado, onde a desinformação abunda e até é disseminada por prémios Nobel!
VJ – Como descreveria o principal objetivo do INE e o quadro estratégico que visa a sua atividade, considerando os v/ pilares - “educação”, “transformação” e “ajuda”?
HCS – O Instituto New Economy nasceu com uma missão bipartida: estabelecer Portugal como um hub líder da criptoeconomia mundial e desenvolver um ambiente regulatório e fiscal que suporte o crescimento desta indústria por cá. Como referido, o tema fiscal ficou assegurado com relativo sucesso este ano. Agora em 2023 sabemos que o governo quer avançar com um grupo de trabalho para definir uma estratégia nacional de Blockchain, que deverá abranger toda a criptoeconomia e cuja conclusão é um dos nossos objectivos principais para o próximo ano. E depois a primeira parte da missão passará sempre um trabalho contínuo.
De resto, os nossos objectivos secundários internos estarão sempre enquadrados nesses três vectores, que em inglês formam o acrónimo ETH. Este também é o símbolo do ether, a segunda maior moeda do espaço e que serve para interagir com a Blockchain Ethereum. E a nível público estarão sempre enquadrados no acrónimo BFT, de Byzantine Fault Tolerance. Que é a propriedade de um sistema distribuído de resistir a ataques quando as suas partes falham ou ficam sob o controlo de um actor malicioso, mas também representa os pilares da (diminuição da) burocracia, (desenvolvimento do) financiamento, e (simplificação da) tributação, que acreditamos serem chave para cumprirmos a nossa missão.
VJ – Quais são as suas expectativas em relação ao papel do INE na evolução da indústria de Blockchain e criptoativos e, nesse sentido, quais são os objetivos futuros da Associação?
HCS – Aqui podemos também revelar que queremos ajudar a desenvolver uma sandbox ou ZLT adequada à nossa indústria, mas também outras políticas públicas relacionadas com a diminuição da burocracia associada ao desenvolvimento de negócios e organizações de base tecnológica e ao incentivo ao financiamento – como por exemplo um regime de associação digital directamente integrado com o conceito de DAO, incentivos fiscais para a atracção de grandes players do sector (como França tem feito), ou um plano de educação nacional sobre a tecnologia e literacia financeira.
Por último, iremos continuar com o trabalho de formação às elites políticas, académicas e empresariais, reforçar o nosso trabalho de comunicação pública, quer em Portugal, quer na Europa, onde temos colaborado com outros grupos de advocacia em Bruxelas, e a procurar agregar ainda mais a comunidade da criptoeconomia Portuguesa e em Portugal. Tudo isto para também tentar atrair talento nacional jovem que fugiu do nosso país e que esteja interessado em regressar para trabalhar num sector muito dinâmico e que paga salários muito competitivos ao nível internacional.
VJ – O que está na génese da criação da Federação de Associações de Criptoeconomia (FACE)? Que objetivos, que futuro se pretendia alcançar?
HCS – A FACE nasceu de um desafio que o anterior Secretário de Estado para a Transição Digital fez como orador na nossa conferência do ano passado, afirmando que seria bom para o projecto da estratégia nacional de Blockchain, lançado já na altura, que a indústria estivesse unida e alinhada perante o governo. Tínhamos os actuais presidentes das três associações e a partir desse momento iniciámos uma relação informal. E, após reunir com o actual Secretário de Estado dessa pasta em Maio passado, começámos a preparar o lançamento da FACE, que ocorreu após as férias de verão e em boa hora, pois iniciámos logo actividade com o tema da tributação, que pela sua complexidade iria sempre beneficiar de uma abordagem conjunta.
VJ – O INE está disponível para cooperar com as autoridades de supervisão nacionais e com o regulador no desenvolvimento de soluções legais e regulatórias satisfatórias? Que expectativas tem o Instituto?
HCS – Claro. Aliás, o primeiro trabalho do Instituto New Economy, ainda sem termos a associação formalmente formada, foi no âmbito da consulta pública nº 5/2020 do Banco de Portugal. Entretanto já participámos em outras consultas públicas do BdP e da CMVM e contámos com oradores destas duas autoridades em conferências que organizámos. As nossas expectativas passam pelo desenvolvimento destas relações entre os reguladores e a indústria, tal como acontece noutros sectores e como tem vindo a ser bem trabalhado pela associação Fintech Portugal, quer a nível nacional, quer a nível europeu. Por exemplo, ainda no início de Dezembro tivemos uma equipa em Bruxelas a participar numa conferência e workshop com reguladores e autoridades de supervisão europeias.
VJ – Quais são os temas/questões mais críticos na área de criptoativos e Blockchain que necessitam de ser regulamentados?
HCS – Contrariamente ao que é noticiado, a maioria das questões da criptoeconomia já são abrangidas por regulação e legislação existente. Em todo o caso, os temas interligados com a dita economia real são sempre os mais importantes, e o MiCA tem exactamente esse escopo, com o seu foco nas stablecoins, bolsas, e ofertas de investimento, pelo que na Europa diria que vamos ficar bem servidos em termos de regulação sobre a criptoeconomia. Por exemplo, e pelo menos em teoria porque um criminoso por definição ignora a lei, a falência da FTX não teria impactado a Europa se o MiCA já estivesse em vigor, já que os fundos dos clientes estariam segregados. Depois temos também a área do AML/CFT, mas aí o TFR, o Transfer of Funds Regulation, e o novo AMLR, apresentam alguns problemas. Sobretudo porque há requisitos de partilha de dados que não são proporcionais ao risco em causa e que entram em conflito com o GDPR e com a necessidade de protecção de dados particularmente sensíveis. Por último, temos também muito trabalho pela frente quanto aos próximos capítulos do MiCA, pois vários políticos estão a tentar aproveitar-se do caso da FTX para legislar de forma extremamente negativa sobre a nossa indústria, atacando direitos chave para a Europa, como o da privacidade, tentando fazê-lo sem quaisquer justificações.
VJ – Espera-se que o MICA funcione como meio de atração de investimento estrangeiro para a União Europeia ou, pelo contrário, favorecerá a migração de empresas (prestadoras de serviços) em ativos virtuais para fora da UE?
HCS – Bem, há vários políticos, eventualmente bem-intencionados, que acreditam que o MiCA vai tornar a Europa líder do sector, e portanto atrair muito investimento estrangeiro. Mas isto é mais hubris regulatório que outra coisa. O MiCA será bom para a Europa mas são os consumidores europeus que atraem as empresas para cá, de forma independente da regulação que exista. Naturalmente que boa regulação facilita o desenvolvimento de negócios e isso é bom para a economia, possibilitando melhores oportunidades para o nosso talento e tornando o velho continente mais competitivo. Já que, tal como para Portugal, este sector apresenta uma excelente oportunidade para a Europa se reinventar no que diz respeito à inovação tecnológica e proteção dos direitos universais como a liberdade e a privacidade.
Por exemplo, o fundo de capital de risco Atomico apresentou recentemente o último relatório sobre o estado do sector tecnológico por cá que mostrou as típicas dificuldades de financiamento e crescimento das start-ups face às norte-americanas e asiáticas. No entanto, a criptoeconomia europeia tem alguns dos líderes mundiais de DeFi e de tecnologia de segurança e de carteiras para criptoativos, entre outros. Isto resulta dos valores europeus serem muito semelhantes aos valores desta indústria, nomeadamente a resiliência, a descentralização e a protecção da privacidade, o que fez com que muito talento europeu cedo se tivesse virado para o desenvolvimento em Blockchain.
VJ – Qual é a vossa perspetiva sobre os recentes debates relativos à harmonização da tributação sobre ativos virtuais a nível da União Europeia?
HCS – É algo inevitável e até positivo, se a harmonização for feita pelos líderes e não pela média ou pelos piores alunos. Ou seja, se toda a Europa ficar com um regime como o de Portugal, que é melhor que o Alemão, ou então como aquele que a Eslovénia estava a tentar votar, de uma taxa simples de apenas 10% para todos os levantamentos oriundos de cripto para moeda fiduciária, então aí sim a Europa irá atrair talento de todo o mundo e investimento, que de momento escolhe o Dubai ou Singapura ou Delaware.
E, quanto a Portugal, iria permitir que o nosso ecossistema vibrante fosse reconhecido pelas suas competências e trabalho desenvolvido, em vez de pelo suposto mito do paraíso fiscal, que nunca existiu. O que existia era uma simplicidade enorme e uma ausência de burocracia associada ao reporte que atraiu muita gente para cá. A incerteza quanto ao pagamento de impostos em sede de IRS até levou vários empreendedores a pagar impostos sobre os seus rendimentos pessoais para garantir que a ambiguidade não viesse a trazer problemas no futuro.
VJ – Internacionalmente comparando, como é que se posiciona Portugal em termos de projetos vanguardistas, regulação e acolhimento no mercado na área de criptoativos?
HCS – Muito bem. A Europa representa 25% das transações de criptoativos mundiais, e Portugal é a oitava maior criptoeconomia da Europa em termos absolutos, também considerando dados da Chainalysis quanto às transações. E, entre as dez maiores criptoeconomias da Europa, Portugal é a terceira per capita. Apesar de este ser um proxy incompleto, mostra a posição interessante que Portugal ocupa internacionalmente quanto ao acolhimento no mercado. Seria, a meu ver, um crime para as próximas gerações perdermos esse lugar cimeiro por falta de visão, desconhecimento ou outra razão qualquer. Seria como se o Infante D. Henrique decidisse fechar a escola de navegação de Sagres porque os velhos do Restelo em Lisboa não viam com bons olhos essas “aventuras” dos descobrimentos. Obviamente a nossa história teria sido totalmente diferente se tal disparate tivesse acontecido e Portugal nunca teria estado na vanguarda técnológica dessa época. Neste momento estamos outra vez na vanguarda, desta vez com os “descobrimentos digitais” da criptoeconomia, metaverso, etc e nós queremos assegurar que Portugal continue a dar cartas neste novo mundo digital e não só no futebol.
Por último, quanto a projectos, o nosso actual ranking traduz-se sobretudo, ou pelo menos de forma mais visível, nalguns dos protocolos mais badalados da indústria, como NEAR, Solana, Polkadot, Filecoin, Cosmos, entre outros, virem para cá organizar as suas conferências anuais, pois já têm um grande número de trabalhadores a viver cá – por enquanto a maioria estrangeiros, mas cada vez mais nacionais. Mas também nas empresas locais, ou fundadas por nacionais, que dão cartas pelo mundo fora. Muitos conhecem a Anchorage do Diogo Mónica, mas também temos outros líderes menos conhecidos, como a Immunefi nos serviços de segurança para DeFi, a Utrust nos pagamentos, a Lightshift Capital no capital de risco, a Relayz nas videoconferências seguras e privadas, a Taikai Labs no desenvolvimento open source, a Impact Market no empreendedorismo social, a WallID na identidade digital, a Zharta nos NFTs, etc. Quanto à regulação, acreditamos que a estratégia nacional tem o potencial para tornar Portugal verdadeiramente vanguardista. A tributação é só a ponta do iceberg no que diz respeito a este tema, pelo que esperamos que o excelente trabalho do governo até agora se transponha para o desenvolvimento do grupo de trabalho responsável por esse plano!