O estatuto do denunciante no regime do branqueamento de capitais
Manuel Nobre Correia
Advogado na RSA-RAPOSO SUBTIL E ASSOCIADOS - SOCIEDADE DE ADVOGADOS, SP, RL
A vertigem que causa a leitura dos diplomas que versam sobre a prevenção e combate ao branqueamento de capitais (e financiamento do terrorismo, não nos esqueçamos) é compreensível: a densidade, detalhe e minúcia dos instrumentos legislativos, sejam os europeus (fonte da esmagadora maioria da legislação a este respeito), sejam os internos (que os transpõem), a interacção complexa com leis dos estados membros que regem realidades distintas mas conexas, a rápida evolução legislativa não facilitam a percepção correcta de todas as particularidades de um regime ainda longe de sedimentado. A nosso ver, a forma mais eficaz de tornar inteligível a legislação relativa ao branqueamento será, como aqui ensaiaremos, decompor a análise por temas de mais fácil apreensão. Propomo-nos, assim, a fazer uma brevíssima incursão na protecção conferida às pessoas que denunciam violações no âmbito do regime anti-branqueamento, que nos parece inteiramente oportuna, dada a entrada em vigor da directiva comunitária relativa ao estatuto do denunciante e que, como adiante veremos, tem aqui aplicação.
A primeira abordagem a esta matéria foi operada pela 4.ª directiva contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, Directiva (UE) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, que, no seu artigo 38.º, impõe aos Estados-Membros garantirem que as pessoas que comuniquem actos ou operações suspeitas de branqueamento de capitais (ou de financiamento do terrorismo) sejam devidamente protegidas de quaisquer ameaças ou actos hostis, particularmente, medidas laborais desfavoráveis ou discriminatórias. Entende-se perfeitamente a particularização de medidas retaliatórias no âmbito laboral, posto que, provavelmente, a maioria dos denunciantes serão tendencialmente funcionários ou representantes das entidades obrigadas e sendo conhecida a denúncia são expectáveis represálias da hierarquia daquela entidade. Para efeitos da protecção a conferir ao denunciante, é irrelevante perante quem sejam comunicadas as suspeitas, seja a responsáveis internos, seja a UIF (Unidades de Informação Financeira). Algo que sempre suscita alguma perplexidade, como é típico de formulações genéricas, é a forma como se aportou o cerne da norma, i. é, a obrigação protectiva dos estados ao denunciante é caracterizada como “devidamente”. Não temos a concretização de qualquer tipo de medida protectiva, mas somente um exortar a medidas eficazes, sem as exemplificar, o que salienta o pendor programático da norma.
A ratio da inclusão desta matéria na directiva resulta clara do considerando preambular 41 onde se diz que “Verificaram-se vários casos de funcionários que foram vítimas de ameaças ou atos hostis após terem participado as suas suspeitas de branqueamento de capitais. Apesar de a presente diretiva não poder interferir com os processos judiciais dos Estados-Membros, é fundamental tratar esta questão, a fim de garantir a eficácia do sistema ABC/CFT. Os Estados-Membros deverão estar cientes deste problema e deverão envidar todos os esforços possíveis para proteger as pessoas, incluindo os funcionários e representantes da entidade obrigada, de tais ameaças ou atos hostis, e garantir, nos termos do direito nacional, a proteção adequada de tais pessoas, especialmente no que respeita ao direito à proteção dos seus dados pessoais e aos seus direitos a uma proteção e representação judicial efetiva”. Não surpreende que assim seja, não só pelas pesadas sanções a que as entidades obrigadas estão sujeitas como pelo aumento excepcional do conteúdo da obrigação de comunicar (vd. quando tenha fundadas razões para suspeitar). Os efeitos gravosos que podem advir para as entidades obrigadas da comunicação de uma suspeita justifica plenamente o receio de retaliação contra o denunciante e, concomitantemente, a necessidade de medidas protectivas deste, de forma a não desincentivar a denúncia como parte integrante de um sistema ABC/CFT assente na comunicação de suspeitas pelas entidades obrigadas.
A 4.ª directiva foi (parcialmente) transposta para a ordem jurídica interna pela Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto que aprovou as medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo em que era de esperar um afinamento das medidas de protecção do denunciante, como veio a suceder. Assim, o artigo 20.º, n.º 6, do diploma, o standard relativamente à comunicação de irregularidades, estatui a obrigação de as entidades obrigadas se absterem de ameaças, actos hostis ou, em particular, de práticas laborais desfavoráveis ou discriminatórias contra as pessoas que, por força das funções que exerçam na entidade obrigada, tomem conhecimento de violações à legislação anti-branqueamento e as comuniquem ao órgão de fiscalização. Acessória, para não dizer redundantemente, também se proíbe que estas comunicações possam ser o fundamento da instauração pela entidade obrigadas, de procedimento disciplinar, civil ou criminal contra o autor da comunicação, excepto se as mesmas forem deliberada e manifestamente infundadas. A nosso ver, era desejável uma maior concretização de conceitos tão genéricos como sejam ameaças e actos hostis, dado que a amplitude interpretativa concebível para o preenchimento destes elementos deixa em aberto a possibilidade de qualquer reparo ou comentário ser, em abstracto, qualificado como uma ameaça ou acto hostil ao denunciante.
Mais adiante, o n.º 3 do artigo 56.º relativo à derrogação do dever de segredo e protecção na prestação de informações, reitera a imposição da mesma obrigação de abstenção das entidades obrigadas contra as pessoas que prestem informações, facultem documentos e os demais elementos necessários ao cumprimento do dever de comunicação de violações à legislação anti-branqueamento e que estejam sujeitas a dever de segredo ou sigilo. À semelhança do anterior, o n.º 4 deste normativo inibe a possibilidade de utilização dessa prestação de informações ou entrega de documentos como fundamento para a perseguição criminal, disciplinar ou civil do denunciante, obviamente desde que este esteja de boa-fé. Inovatoriamente, o n.º 6 estatui que as entidades obrigadas garantam perante terceiros, nomeadamente clientes e demais colaboradores, a confidencialidade da identidade dos colaboradores que prestem informações ou facultem elementos no cumprimento do dever de comunicação.
Exceptuando a obrigação de garantir a confidencialidade da identidade do denunciante, as demais obrigações de abstenção são estatuídas quanto à denúncia de irregularidades para as autoridades sectoriais relevantes nos termos do artigo 108.º.
O artigo 169.º inclui dentro dos factos típicos que constituem contraordenação a violação da obrigação de abstenção imposta pelo artigo 20.º, n.º 6 (alínea n), e pelo artigo 108.º, n.º 4 e 5 (alíneas ww e nnn). Estranhamente, em nosso entender, a violação das obrigações de abstenção decorrentes do artigo 56.º não constituem uma contraordenação, mas sim a violação da obrigação de garantia do anonimato do colaborador denunciante. Dizemos estranhamente porque esta conduta ilícita não exclui a possibilidade de concurso com a violação do dever de abstenção da norma, pelo que sempre constituiria uma conduta típica. Pese embora ser passível de integração por analogia, seria desejável a rectificação dessa lacuna da lei, em abono da eficácia do sistema. Ainda mais num momento em que Portugal é alvo de um processo de infracção emergente da transposição da directiva.
Cumpre ainda chamar a atenção para o aparente lapso legislativo relativamente à exacta repetição do teor da alínea ww do artigo 169.º pela alínea nnn) da mesma disposição, o que, por ser evidentemente redundante, apenas se concebe como lapso.
O regime vigente de protecção dos denunciantes de violações consagrado na lei de combate ao branqueamento e financiamento, para além dos lapsos que aqui se apontaram, estabelece de forma excessivamente genérica as obrigações das entidades, que deveriam ser mais concretizadas pelas dificuldades de aplicação que se antecipam.
Entretanto, é publicada a Directiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2019, relativa à protecção das pessoas que denunciam violações do direito da União, a qual, por força do artigo 1.º, n.º 1, a), ii), é aplicável às violações dos actos da União respeitantes à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.
Porém o artigo 3.º, referente à relação com outros actos da União e disposições nacionais, dispõe que as disposições desta directiva são aplicáveis na medida em que uma matéria não esteja regulamentada de forma imperativa nos referidos atos setoriais específicos da União. O que, salvo melhor interpretação, significa que a directiva é aplicável supletivamente, ou seja, no que não seja expressamente regulamentado pela Lei 83/2017.
Só um exame detalhado, que não se compadece com a novidade da directiva, permitirá estabelecer claramente quais as concretas disposições que coincidem com o regime de protecção instituído pela lei anti-branqueamento. Numa análise perfunctória, diremos que, mais evidentemente, serão aplicáveis em concurso com as normas do regime anti-branqueamento as disposições relativas à extensão da protecção a alguns familiares dos denunciantes, a invalidade das obrigações legais ou contratuais de lealdade ou acordo de não-divulgação de confidencialidade impeditivos das denúncias e, também, a distinção entre denunciantes, facilitadores e informadores.
Uma nota final para mencionar o Comunicado do Conselho de Ministros do passado 20 de Fevereiro de 2020 sobre a transposição para o ordenamento jurídico interno da Directiva (UE) 2018/1673, relativa à harmonização do direito penal dos estados membros no que concerne à tipologia dos ilícitos, às condições de procedibilidade, aos limites mínimos das penas e conflitos de competência, Directiva essa omissa quanto ao tema que tratamos aqui, o que permite concluir pela aplicação subsidiária do estatuto do denunciante até à sua transposição efectiva.
Para terminar estas breves notas, diremos que o regime carece de ser testado na sua eficácia e aplicabilidade prática pelos tribunais antes de poder ser alvo de uma verdadeira avaliação, inexistindo substituto algum para o conhecimento que advém da experiência.