Justiça necessita de mecanismos alternativos de resolução de litígios
A modernização da justiça deverá passar pela introdução de mecanismos alternativos de resolução de litígios para dar respostas diferenciadas a problemas diversos. O sistema de justiça não se pode fechar sobre si próprio, referiu Mariana Franca Gouveia à “Vida Judiciária”. Considerou ainda que a pandemia fechou os tribunais durante um período excessivo.
Como descreveria o actual modelo de organização dos tribunais? Concorda com essa organização e que transformações, na sua opinião, deveriam ser introduzidas ?
Penso que a reorganização judiciária feita em 2013 foi no bom sentido, procurando tornar o sistema mais especializado e mais eficiente. É essencial para a modernização da nossa justiça que a atividade judiciária acompanhe a cada vez maior complexidade e variedade dos litígios, decorrente do desenvolvimento e da globalização.
O que falta ainda é introduzir mecanismos alternativos de resolução de litígios, numa perspetiva holística e integrada, que consiga dar respostas diferenciadas a problemas diversos. A mediação, a conciliação, os dispute boards, a arbitragem devem ser vistos como instrumentos da justiça integrados na oferta judicial. Não devem estar à parte, mas ser componentes de um mesmo e único sistema de justiça. Que esteja ao serviço dos cidadãos e em que estes se revejam.
Quais os desafios actuais para a construção de um edifício de organização judiciária eficiente e sustentável?
Um pensamento totalmente centrado no cidadão, na empresa ou outra forma de organização. Um sistema de justiça que não se feche sobre si próprio e os seus problemas, mas que se abra à sociedade portuguesa, na sua plasticidade e multiplicidade atual. Os tribunais aplicam a Justiça em nome do Povo, como diz a nossa Constituição; pelo que a sua obrigação é estar perto do seu povo, quer abrindo-se a ele, quer mostrando-lhe que aquilo que faz é o resultado da sua vontade. Não numa lógica populista, é evidente, mas numa lógica democrática, aberta, moderna e prestável.
Deixe-me dar um exemplo muito simples do que falo. Porque vemos por vezes os senhores juízes a tratar os cidadãos e os seus advogados com displicência? É algo inadmissível!
Que impacto trouxe/trará a pandemia na organização e funcionamento do sistema judiciário?
A pandemia fechou os tribunais durante demasiado tempo, algo que, segundo sei, não ocorreu em nenhum país da União Europeia. Impensável e, na minha opinião, violador do princípio fundamental do Estado de Direito. Uma lição que se tem de retirar é “nunca mais”, é procurar perceber porque aconteceu e criar condições para que não se repita. Todos aprendemos a fazer quase tudo por meios remotos e esses instrumentos devem ser generalizados, mais uma vez ao serviço do cidadão.
Meios de resolução alternativa
Quais as valências e oportunidades existentes em relação aos meios alternativos de resolução de litígios?
Os meios de resolução alternativa de litígios têm mostrado uma enorme capacidade de complementar os instrumentos da justiça tradicional, ocupando os espaços em que este tem maior dificuldade em resolver o litígio. Seja porque se pretende uma decisão mais célere, seja porque se pretendem decisores mais especializados ou não nacionais, seja porque a disputa necessita de pacificação, mais do que resolução jurídica. Os meios RAL, na sua flexibilidade, têm conseguido chegar a soluções mais alinhadas com aquilo que os cidadãos procuram. Por exemplo, a mediação é ideal para conflitos entre pessoas que têm de manter-se em contacto por muito tempo, sejam vizinhos, trabalhadores ou progenitores de filhos menores. A mediação procura restabelecer a comunicação perdida há muito entre eles e, através da recriação da compreensão mútua, focar na solução em vez do problema. As partes entram numa mediação concentrada num litígio, mas, quando esta é bem sucedida, saem ambas contra o problema e focadas na sua solução.
Acha que a eficácia do sistema judicial está ligada à necessidade da existência desses meios alternativos, exemplificativa e nomeadamente da arbitragem?
Sim, é essa a minha opinião. Há muito tempo que defendo que a Justiça devia adotar uma lógica de multiportas que vem sendo abraçada por vários ordenamentos jurídicos. Os tribunais deveriam ser redesenhados como casas da Justiça, mais uma vez ao serviço do povo, com diferentes alternativas para os variados problemas gerados pela sociedade.
Quais são as vantagens da arbitragem, e quais são as características necessárias para ser um bom árbitro?
A arbitragem é um espaço de liberdade. Nasce da liberdade das partes em quererem ver o seu litígio resolvido de outra forma e por outros protagonistas. Porque pensam que é mais adequado ao seu caso e isso tem de ser respeitado – e é respeitado pela nossa Constituição, que consagra expressamente os tribunais arbitrais e, mais, assume o princípio da autonomia privada como essencial do nosso ordenamento jurídico. Liberdade e autodeterminação, é esse o fundamento maior da arbitragem e vejo com tristeza algumas críticas ao instituto, claramente enviesadas na sua perceção do que é justo.
Quanto à segunda parte da sua pergunta, para ser um bom árbitro é preciso, antes de mais, respeitar essa vontade das partes, essa sua liberdade e autonomia. Depois, saber o que são as regras do due process, o devido processo legal. Arbitragem é uma junção de autonomia privada, processo justo e controlo do Estado. Perceber bem esses contornos do instituto, ouvir as partes e conduzi-las no respeito dos fundamentos da arbitragem e, por fim, saber também quais são os limites do Estado (seja o Português, seja outro onde a arbitragem está sedeada ou a sentença pode vir a ser executada) para o reconhecimento da decisão arbitral.
Arbitragem ao serviço do povo
Concorda com o aumento da transparência nas arbitragens onde o Estado intervenha, em detrimento do princípio da confidencialidade?
Concordo totalmente e a lei já vai nesse sentido. A arbitragem também aí tem de estar ao serviço do povo porque o Estado somos todos nós e a todos nos é devida total transparência e informação. Penso, pois, que tudo o que se passa na arbitragem com o Estado – todos os atos e não apenas a decisão final – deveria ser público. Já é assim na arbitragem de investimento, entre Estados e investidores estrangeiros à luz do CIRDI/ISCID – não vejo qualquer razão para que não possa também ser assim em Portugal.
Concorda com a ideia de que alguns temas ou processos devam ser objeto de mediação obrigatória?
Tenho dúvidas sobre se é a melhor solução: por um lado, penso que seria uma boa solução para fazer o mecanismo crescer, por outro, tenho receio que produza o efeito contrário. Penso que poderíamos experimentar, ter uma experiência piloto bem monitorizada e estudada e depois avançar ou não, conforme os resultados. Há exemplos de sucesso em países tão diferentes como a Itália ou Moçambique, seria interessante ver aqui como funcionaria.
Será que as arbitragens poderão permitir a opacidade não desejável de algumas relações comerciais?
Não. A questão é de privacidade, não de opacidade; é de liberdade, de escolha, não de segredo ou conluio. Pergunto: se as relações são privadas, obrigar à sua publicidade não é uma violência? Há certos populismos que partem de enviesamentos que tenho imensa dificuldade em compreender.
Acha necessária a criação de um centro de mediação para resolução de litígios no espaço da lusofonia?
Não, penso que já temos centros de arbitragem e mediação capazes de responder aos litígios existentes. A criação de um centro não representa por si só a resolução de quaisquer problemas.
A questão da previsibilidade
Acredita que o aumento de processos no seio dos tribunais estaduais pode contribuir para uma expansão, ainda mais acentuada, da arbitragem?
Não, não me parece que essa relação exista. O que se procura na arbitragem é muitas vezes previsibilidade: do processo, do tempo que demora; dos critérios de decisão quando se pode escolher os juízes-árbitros. Os árbitros são necessariamente, por lei, pela Constituição, independentes e imparciais, mas o facto de as partes terem uma palavra na sua escolha permite-lhes ter uma ideia, conhecendo de antemão aquelas pessoas, da forma como pensam, como aplicam o direito e como, no fim, poderão decidir. Se há valor importante no meio dos negócios, é a previsibilidade. Isso é indiferente às pendências em tribunais estaduais
Considera que a preparação e formação atual dos juízes é adequada e suficiente no panorama que vivemos? Estarão os juízes (im)preparados para tratar de assuntos altamente especializados?
Tenho em geral muito boa impressão dos juízes e penso que as generalizações são, como sempre, perigosas. Como em todas as profissões, há melhor e pior. O que é determinante é que haja uma gestão equilibrada das várias valências, que os juízes se vão especializando à medida do seu gosto e vocação e isso seja um valor reconhecido para o sistema.
Como descreveria o actual modelo de organização dos tribunais? Concorda com essa organização e que transformações, na sua opinião, deveriam ser introduzidas ?
Penso que a reorganização judiciária feita em 2013 foi no bom sentido, procurando tornar o sistema mais especializado e mais eficiente. É essencial para a modernização da nossa justiça que a atividade judiciária acompanhe a cada vez maior complexidade e variedade dos litígios, decorrente do desenvolvimento e da globalização.
O que falta ainda é introduzir mecanismos alternativos de resolução de litígios, numa perspetiva holística e integrada, que consiga dar respostas diferenciadas a problemas diversos. A mediação, a conciliação, os dispute boards, a arbitragem devem ser vistos como instrumentos da justiça integrados na oferta judicial. Não devem estar à parte, mas ser componentes de um mesmo e único sistema de justiça. Que esteja ao serviço dos cidadãos e em que estes se revejam.
Quais os desafios actuais para a construção de um edifício de organização judiciária eficiente e sustentável?
Um pensamento totalmente centrado no cidadão, na empresa ou outra forma de organização. Um sistema de justiça que não se feche sobre si próprio e os seus problemas, mas que se abra à sociedade portuguesa, na sua plasticidade e multiplicidade atual. Os tribunais aplicam a Justiça em nome do Povo, como diz a nossa Constituição; pelo que a sua obrigação é estar perto do seu povo, quer abrindo-se a ele, quer mostrando-lhe que aquilo que faz é o resultado da sua vontade. Não numa lógica populista, é evidente, mas numa lógica democrática, aberta, moderna e prestável.
Deixe-me dar um exemplo muito simples do que falo. Porque vemos por vezes os senhores juízes a tratar os cidadãos e os seus advogados com displicência? É algo inadmissível!
Que impacto trouxe/trará a pandemia na organização e funcionamento do sistema judiciário?
A pandemia fechou os tribunais durante demasiado tempo, algo que, segundo sei, não ocorreu em nenhum país da União Europeia. Impensável e, na minha opinião, violador do princípio fundamental do Estado de Direito. Uma lição que se tem de retirar é “nunca mais”, é procurar perceber porque aconteceu e criar condições para que não se repita. Todos aprendemos a fazer quase tudo por meios remotos e esses instrumentos devem ser generalizados, mais uma vez ao serviço do cidadão.
Meios de resolução alternativa
Quais as valências e oportunidades existentes em relação aos meios alternativos de resolução de litígios?
Os meios de resolução alternativa de litígios têm mostrado uma enorme capacidade de complementar os instrumentos da justiça tradicional, ocupando os espaços em que este tem maior dificuldade em resolver o litígio. Seja porque se pretende uma decisão mais célere, seja porque se pretendem decisores mais especializados ou não nacionais, seja porque a disputa necessita de pacificação, mais do que resolução jurídica. Os meios RAL, na sua flexibilidade, têm conseguido chegar a soluções mais alinhadas com aquilo que os cidadãos procuram. Por exemplo, a mediação é ideal para conflitos entre pessoas que têm de manter-se em contacto por muito tempo, sejam vizinhos, trabalhadores ou progenitores de filhos menores. A mediação procura restabelecer a comunicação perdida há muito entre eles e, através da recriação da compreensão mútua, focar na solução em vez do problema. As partes entram numa mediação concentrada num litígio, mas, quando esta é bem sucedida, saem ambas contra o problema e focadas na sua solução.
Acha que a eficácia do sistema judicial está ligada à necessidade da existência desses meios alternativos, exemplificativa e nomeadamente da arbitragem?
Sim, é essa a minha opinião. Há muito tempo que defendo que a Justiça devia adotar uma lógica de multiportas que vem sendo abraçada por vários ordenamentos jurídicos. Os tribunais deveriam ser redesenhados como casas da Justiça, mais uma vez ao serviço do povo, com diferentes alternativas para os variados problemas gerados pela sociedade.
Quais são as vantagens da arbitragem, e quais são as características necessárias para ser um bom árbitro?
A arbitragem é um espaço de liberdade. Nasce da liberdade das partes em quererem ver o seu litígio resolvido de outra forma e por outros protagonistas. Porque pensam que é mais adequado ao seu caso e isso tem de ser respeitado – e é respeitado pela nossa Constituição, que consagra expressamente os tribunais arbitrais e, mais, assume o princípio da autonomia privada como essencial do nosso ordenamento jurídico. Liberdade e autodeterminação, é esse o fundamento maior da arbitragem e vejo com tristeza algumas críticas ao instituto, claramente enviesadas na sua perceção do que é justo.
Quanto à segunda parte da sua pergunta, para ser um bom árbitro é preciso, antes de mais, respeitar essa vontade das partes, essa sua liberdade e autonomia. Depois, saber o que são as regras do due process, o devido processo legal. Arbitragem é uma junção de autonomia privada, processo justo e controlo do Estado. Perceber bem esses contornos do instituto, ouvir as partes e conduzi-las no respeito dos fundamentos da arbitragem e, por fim, saber também quais são os limites do Estado (seja o Português, seja outro onde a arbitragem está sedeada ou a sentença pode vir a ser executada) para o reconhecimento da decisão arbitral.
Arbitragem ao serviço do povo
Concorda com o aumento da transparência nas arbitragens onde o Estado intervenha, em detrimento do princípio da confidencialidade?
Concordo totalmente e a lei já vai nesse sentido. A arbitragem também aí tem de estar ao serviço do povo porque o Estado somos todos nós e a todos nos é devida total transparência e informação. Penso, pois, que tudo o que se passa na arbitragem com o Estado – todos os atos e não apenas a decisão final – deveria ser público. Já é assim na arbitragem de investimento, entre Estados e investidores estrangeiros à luz do CIRDI/ISCID – não vejo qualquer razão para que não possa também ser assim em Portugal.
Concorda com a ideia de que alguns temas ou processos devam ser objeto de mediação obrigatória?
Tenho dúvidas sobre se é a melhor solução: por um lado, penso que seria uma boa solução para fazer o mecanismo crescer, por outro, tenho receio que produza o efeito contrário. Penso que poderíamos experimentar, ter uma experiência piloto bem monitorizada e estudada e depois avançar ou não, conforme os resultados. Há exemplos de sucesso em países tão diferentes como a Itália ou Moçambique, seria interessante ver aqui como funcionaria.
Será que as arbitragens poderão permitir a opacidade não desejável de algumas relações comerciais?
Não. A questão é de privacidade, não de opacidade; é de liberdade, de escolha, não de segredo ou conluio. Pergunto: se as relações são privadas, obrigar à sua publicidade não é uma violência? Há certos populismos que partem de enviesamentos que tenho imensa dificuldade em compreender.
Acha necessária a criação de um centro de mediação para resolução de litígios no espaço da lusofonia?
Não, penso que já temos centros de arbitragem e mediação capazes de responder aos litígios existentes. A criação de um centro não representa por si só a resolução de quaisquer problemas.
A questão da previsibilidade
Acredita que o aumento de processos no seio dos tribunais estaduais pode contribuir para uma expansão, ainda mais acentuada, da arbitragem?
Não, não me parece que essa relação exista. O que se procura na arbitragem é muitas vezes previsibilidade: do processo, do tempo que demora; dos critérios de decisão quando se pode escolher os juízes-árbitros. Os árbitros são necessariamente, por lei, pela Constituição, independentes e imparciais, mas o facto de as partes terem uma palavra na sua escolha permite-lhes ter uma ideia, conhecendo de antemão aquelas pessoas, da forma como pensam, como aplicam o direito e como, no fim, poderão decidir. Se há valor importante no meio dos negócios, é a previsibilidade. Isso é indiferente às pendências em tribunais estaduais
Considera que a preparação e formação atual dos juízes é adequada e suficiente no panorama que vivemos? Estarão os juízes (im)preparados para tratar de assuntos altamente especializados?
Tenho em geral muito boa impressão dos juízes e penso que as generalizações são, como sempre, perigosas. Como em todas as profissões, há melhor e pior. O que é determinante é que haja uma gestão equilibrada das várias valências, que os juízes se vão especializando à medida do seu gosto e vocação e isso seja um valor reconhecido para o sistema.