A maior eficiência na construção deveria estar em linha com a sustentabilidade ambiental
Deveriam ser obrigatórias avaliações credíveis dos edifícios antes de qualquer projeto. “Os instrumentos de apoio financeiro à reabilitação deviam ser mais acessíveis a privados, com menos ónus de longo prazo, contribuindo mais para as dinâmicas do arrendamento” – considera Alice Tavares. Em entrevista à “Vida Judiciária”, a Presidente da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Proteção do Património lamenta a falta de incentivos à reabilitação urbana. Segundo refere a investigadora da Universidade de Aveiro, seria desejável reabilitar mais, recuperando e adaptando construções, respeitando o legado cultural e produzindo menos resíduos.
Vida Judiciária – Desempenha a função de presidente da APRUPP (Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Proteção do Património). Quais as finalidades da associação?
Alice Tavares – A associação sem fins lucrativos APRUPP tem como finalidades promover e divulgar o conceito de reabilitação urbana como principal veículo para a salvaguarda da identidade e valorização do património construído, a redução das assimetrias sociais e a promoção da participação dos cidadãos;
Colaborar na preservação do edificado de interesse histórico e patrimonial;
Estudar, aperfeiçoar e divulgar as boas práticas da reabilitação urbana;
Apoiar a formação de técnicos;
Desenvolver o intercâmbio nacional e internacional de práticas, saberes e conhecimentos no campo da reabilitação e da protecção do património.
VJ – De modo a conhecermos o alcance da APRUPP, quais são as parcerias existentes entre a associação e outras entidades e as finalidades pretendidas através dessas parcerias?
AT – A APRUPP procura estabelecer parcerias com outras associações regionais, nacionais e internacionais cujo âmbito esteja associado à reabilitação urbana e à defesa do património, no sentido de dar maior visibilidade à opinião do cidadão. Como exemplo, a APRUPP é uma das associações fundadoras do Fórum do Património (https://www.forumdopatrimonio.org/), que reuniu as ONG portuguesas no dia 1 de outubro, em Estremoz, e criou um grupo de trabalho com o GECORPA para a temática da Energia & Património. Procura ainda colaborar com os municípios para a formação de técnicos, para o apoio à divulgação de boas práticas de reabilitação, e participa nos júris de Prémios de Reabilitação promovidos por estes (nomeadamente o de Viana do Castelo e o de Vila Nova de Famalicão). Tem ainda integrado o júri do Prémio IHRU / Prémio Nuno Teotónio Pereira, a nível nacional. Estabelece parcerias com diversas entidades, como as universidades portuguesas, nomeadamente a Universidade de Aveiro e a Universidade do Porto, bem como o LNEC, para a realização de workshops técnicos na área da reabilitação e conhecimento do edificado antigo e também a realização de conferências e debates temáticos. A APRUPP foi uma das 13 entidades selecionadas pela UNESCO, dentro do grupo Europa & América do Norte, para desenvolver a iniciativa World Heritage Volunteers que decorreu em outubro de 2022, no Porto, coordenando o consórcio constituído pelos parceiros Departamento Gallaecia da Universidade Portucalense, Centro da Terra, Município do Porto e European Heritage Volunteers, para além do apoio da Universidade de Aveiro (CICECO, DEMAC, DEC) e da Universidade do Porto (FEUP, FAUP), entre muitos outros apoios empresariais e de técnicos da área da reabilitação, estudantes de arquitetura e patrocinadores (https://aprupp.org/).
VJ – Qual é o caminho a seguir por parte da associação na defesa dos seus interesses?
AT – As associações portuguesas têm os seus âmbitos locais, regionais ou nacionais de ação, de defesa do património e da cultura, havendo um grupo de associações que em 2017 assinou um memorando criando o Fórum do Património, um grupo de ONG que foi crescendo nestes últimos anos. Cada associação define a metodologia que considera mais adequada para a defesa do interesse público. Tem-se, no entanto, verificado que a simples denúncia de casos de ações erróneas sobre o património edificado em geral (não apenas os edifícios classificados), incluindo a sua demolição, é uma forma insuficiente de defesa do património, pela morosidade de resposta por parte das entidades públicas e pela falta de atuação preventiva por parte destas. A participação pública prevista na lei para momentos cruciais de discussão dos instrumentos de planeamento urbano/gestão do território (PDM, Planos de urbanização, planos de pormenor) tem vindo a ser cerceada ou adulterada, já que a divulgação não é feita de forma ativa e a receção das comunicações do cidadão é em muitos casos centralizada para o email do presidente do Município, sem que haja um verdadeiro debate público em muitos casos. Este aspeto tem um impacto muito negativo nas possibilidades de defesa do património. Por este motivo, outras formas de ação estão a ser desenvolvidas que passam pela sensibilização pública, iniciativas de maior proximidade do cidadão e de definição de novas parcerias entre as ONG do património e cultura.
"Em Portugal a reabilitação urbana faz um uso excessivo de demolições mantendo apenas a fachada"
VJ – Tem contacto com a área da arquitetura e engenheira civil. Que papel essas áreas, em concreto, podem desempenhar no que toca à maior eficiência na construção e reabilitação urbana?
AT – A arquitetura e as engenharias em geral têm um papel fundamental para ultrapassar as insuficiências da Lei, nomeadamente quando os técnicos têm consolidado um conhecimento sobre o edificado antigo e as suas potencialidades e têm o conhecimento necessário e a capacidade para justificarem opções menos destrutivas e mais valorizadoras da autenticidade do património. No entanto, esta formação técnica e a experiência necessária de intervenção no património existente continua a ter um número insuficiente de técnicos, o que, associado a pressões de investidores, à falta de um verdadeiro planeamento da defesa do património edificado em grande parte dos municípios (que seja mais do que frases em preâmbulos de PDM), à falta de legislação que coloque a definição de “reabilitação” como algo não altamente destruidor, se conjugam como motivos de desvalorização das ações de reabilitação, passando a ser simplesmente construção e “reconstrução”. A maior eficiência na construção deveria estar em linha com a sustentabilidade ambiental e isso quer dizer menos produção de resíduos e produtos mais duráveis, para além de menores consumos energéticos e famílias menos dependentes de equipamentos para atingirem o conforto térmico ou dependentes de investimentos com elevados períodos de retorno financeiro. Ou seja, um conhecimento mais profundo dos materiais, uma indústria mais responsável pelo ciclo de vida do que coloca no mercado e uma aposta maior nos sistemas passivos da construção, o que deveria levar a uma aposta maior na arquitetura e na sua capacidade de resposta bioclimática, devendo a estratégia ser alicerçada em bons projetos de engenharia, importantes para se atingirem equilíbrios na intervenção no existente.
VJ – Como situa Portugal em matéria sobre reabilitação urbana e se no nosso caso é necessário adotar novos ideais e novas políticas?
AT – Em Portugal, a reabilitação urbana tem na generalidade como imagem de marca o “fachadismo”, um uso excessivo de demolições mantendo apenas a fachada, com o consequente aumento de produção de resíduos e uma perda de património edificado não avaliada, nem monitorizada pelas entidades públicas. Em consequência do ponto de vista da salvaguarda dos valores culturais e patrimoniais, as ações de reabilitação urbana precisam urgentemente de novas orientações estratégicas, apoiadas por legislação e regulamentos municipais mais assertivos e compatibilizados com as orientações internacionais de valorização do património edificado (não exclusivamente classificado). São necessárias novas políticas que consigam conjugar a natural ligação entre cultura e património e valorizar mais a autenticidade do edificado antigo. Alicerçar o desenvolvimento económico, turístico e imobiliário em níveis aceitáveis de autenticidade e integridade do Património edificado, previamente definidos, é fundamental para que a regeneração/revitalização urbana continue a ser um recurso sustentável / reutilizavel para as gerações futuras e não apenas para o mercado de consumo internacional. Este objetivo exige alterações ao nível da legislação da construção/reabilitação e ligada à gestão do território, bem como à definição de uma entidade supramunicipal que aprecie, acompanhe e promova a interoperabilidade de ações e medidas entre diversos munícipios na área da preservação e valorização do Património edificado (não classificado, já que para o classificado existe a DGPC – Direção-Geral do Património Cultural), como por exemplo existe para as Reservas Ecológica e Agrícola, com as suas questões específicas. Isto promoveria uma visão diferente sobre o edificado antigo não classificado, mas de interesse público, ultrapassando-se as vagas intenções que ficam regularmente apenas restritas aos preâmbulos dos Planos Diretores Municipais, não havendo ninguém que acompanhe a aplicabilidade e os resultados das mesmas.
VJ – Considera a legislação atual aplicada a esta temática suficiente? Caso contrário, que lacunas legislativas identifica?
AT – A legislação portuguesa teve recentemente uma alteração relevante na área da reabilitação do edificado residencial com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 95/2019, de 18 de julho, que teve associado diversas portarias. De destacar ainda as alterações importantes ao nível da avaliação do edificado em termos de segurança estrutural do ponto de vista sísmico, que veio ao encontro de alertas da comunidade científica, com especial relevância para áreas sísmicas, como por exemplo a capital do país. Esta legislação teve ainda como base estratégica 3 princípios que deveriam ter ficado como os motores das intervenções de reabilitação. Contudo, a falta de continuidade das orientações enunciadas e das alterações legislativas necessárias e a manutenção de “alçapões” da lei têm desvirtuado a aplicação da mesma e colocado o ónus na capacidade de os técnicos argumentarem de forma sustentável as razões pelas quais não se devem aplicar determinados princípios previstos na lei a edifícios antigos existentes, em fase de licenciamento. Ora esta circunstância seria desnecessária se a lei estivesse mais próxima do conhecimento científico, entendendo que os princípios da construção nova não são aplicáveis à construção antiga. Metaforicamente estamos a avaliar um médico usando os parâmetros de avaliação para um engenheiro, ora, por melhor que seja o médico, este irá sempre falhar como engenheiro. O mesmo se passa entre a construção antiga e a construção nova, os materiais têm características diferentes e os princípios de construção são igualmente diferentes, pelo que a intervenção deveria refletir esse conhecimento base. Existem diversas alterações ao nível da legislação, podendo começar-se pela definição na lei do que é “reabilitação”, distinguindo-a totalmente do que é “reconstrução”, com as devidas consequências em termos fiscais e de apoios financeiros, incluindo Europeus. Esta é uma questão de princípio e também um contributo de natureza ética.
VJ – Na sua opinião, a situação pandémica trouxe repercussões no que toca à reabilitação urbana?
AT – No que concerne à quantidade de intervenções, não se observaram grandes constrangimentos, apesar de as empresas de construção se terem confrontado com uma gestão diferente dos recursos humanos. Contudo, a situação pandémica teve repercussões em termos da produção de materiais e equipamentos, consequentemente, em termos de preços, o que tem vindo a onerar em contínuo as obras, tornando difícil a gestão das mesmas.
Há, contudo, a destacar uma sensível menor fiscalização das intervenções e da promoção de participação pública no que concerne à defesa do património. Demoliu-se muito, com menor contestação pública, o que agora se encontra em processo de consciencialização dos efeitos.
VJ – Numa altura em que a sociedade, cada vez mais, se preocupa com um desenvolvimento sustentável, em que medida o setor da reabilitação urbana e proteção do território pode contribuir para alcançar esse mesmo objetivo?
AT – O desenvolvimento sustentável exige a promoção do binómio menor produção de resíduos & maior durabilidade dos edifícios. Para se atingir este objetivo, são necessárias orientações políticas e legislativas claras para a restrição de demolições indiscriminadas, a obrigatoriedade de avaliações credíveis dos edifícios antes de qualquer projeto, a definição de funções compatíveis com as características do edifício existente. Simultaneamente, mais do que o foco na reciclagem dos materiais, deverá apostar-se na garantia de maior durabilidade dos materiais e garantias de maior compatibilidade. Sendo esta promoção acompanhada de medidas que obriguem à não descontinuidade em curto espaço de tempo dos produtos industriais e dos equipamentos. De que serve entrar na Lei a garantia de obras por 10 anos, quando a mesma lei da construção impele ao uso de equipamentos (nomeadamente na área da energia/térmica) que não acompanham essa mesma garantia? E o que dizer de prazos de construção que, para se garantirem os financiamentos, quase obrigam ao recurso de materiais mais perecíveis ou ao não cumprimento das boas regras de construção, a que os técnicos projetistas têm por lei de assumir que serão seguidas?
Outro aspeto é a promoção de medidas dirigidas à responsabilidade sobre o destino a dar aos materiais e equipamentos em fim de ciclo de vida pelas indústrias respetivas, que pode contribuir para um maior entendimento de um desenvolvimento sustentável, com efeitos benéficos para o meio ambiente e qualidade de vida. Todos os dias temos a entrada de novos materiais de construção no mercado, cada vez mais complexos e com custos de reciclagem onerosos, o que acaba por aumentar a pressão para um aumento exponencial de aterros e modos de destruição, com supostas medidas compensadoras das populações que os têm de acolher.
VJ – O Instrumento Financeiro de Reabilitação e Revitalização Urbana 2020 (IFRRU 2020) que mantém o seu funcionamento até 2023 é o maior programa de incentivo à reabilitação urbana lançado em Portugal. Como avalia até agora o sucesso deste plano?
AT – Os instrumentos de apoio financeiro à reabilitação deviam ser mais acessíveis a privados, com menos ónus de longo prazo, contribuindo mais para as dinâmicas do arrendamento.
VJ – Através da introdução do Plano de Recuperação e Resiliência, considera essencial alocar parte das suas verbas em medidas e planos semelhantes, que se foquem em revitalizar o mercado da construção e reabilitação urbana?
AT – São fundamentais mais medidas de apoio a uma reabilitação qualificada, em detrimento de apoios para reconstruções. Isto quer dizer que, previamente a qualquer apoio financeiro, se deve exigir a apresentação de um conhecimento dos sistemas construtivos tradicionais presentes no edificado a intervir e a definição de funções compatíveis. De outra forma, sem qualquer orientação estratégica, iremos continuar a afastar-nos de metas em termos da redução da produção de resíduos e a perder de forma irreversível património edificado. Uma especial atenção deve ser dada às medidas da chamada “eficiência energética”, para que não se transforme o edificado de forma acrítica e tabelada, no sentido da criação de dependências futuras de equipamentos e sem o retorno financeiro esperado ao nível da redução de custos de consumos energéticos, ao que se acrescenta o ónus da manutenção especializada dos mesmos, não acessível a todas as famílias. Ou seja, uma aposta na arquitetura para aumento de medidas de natureza passiva pode atingir de forma abrangente mais famílias portuguesas e com menos consequências negativas para o património e mais enquadradas na realidade portuguesa. Não deveremos aplicar medidas que cientificamente está provado que se aplicam a países nórdicos europeus com características climatéricas muito diferentes das nossas. O combate à pobreza energética faz-se também pelo controlo dos custos da energia e não exclusivamente pela obrigatoriedade de medidas de transformação radical do edificado.
Vida Judiciária – Desempenha a função de presidente da APRUPP (Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Proteção do Património). Quais as finalidades da associação?
Alice Tavares – A associação sem fins lucrativos APRUPP tem como finalidades promover e divulgar o conceito de reabilitação urbana como principal veículo para a salvaguarda da identidade e valorização do património construído, a redução das assimetrias sociais e a promoção da participação dos cidadãos;
Colaborar na preservação do edificado de interesse histórico e patrimonial;
Estudar, aperfeiçoar e divulgar as boas práticas da reabilitação urbana;
Apoiar a formação de técnicos;
Desenvolver o intercâmbio nacional e internacional de práticas, saberes e conhecimentos no campo da reabilitação e da protecção do património.
VJ – De modo a conhecermos o alcance da APRUPP, quais são as parcerias existentes entre a associação e outras entidades e as finalidades pretendidas através dessas parcerias?
AT – A APRUPP procura estabelecer parcerias com outras associações regionais, nacionais e internacionais cujo âmbito esteja associado à reabilitação urbana e à defesa do património, no sentido de dar maior visibilidade à opinião do cidadão. Como exemplo, a APRUPP é uma das associações fundadoras do Fórum do Património (https://www.forumdopatrimonio.org/), que reuniu as ONG portuguesas no dia 1 de outubro, em Estremoz, e criou um grupo de trabalho com o GECORPA para a temática da Energia & Património. Procura ainda colaborar com os municípios para a formação de técnicos, para o apoio à divulgação de boas práticas de reabilitação, e participa nos júris de Prémios de Reabilitação promovidos por estes (nomeadamente o de Viana do Castelo e o de Vila Nova de Famalicão). Tem ainda integrado o júri do Prémio IHRU / Prémio Nuno Teotónio Pereira, a nível nacional. Estabelece parcerias com diversas entidades, como as universidades portuguesas, nomeadamente a Universidade de Aveiro e a Universidade do Porto, bem como o LNEC, para a realização de workshops técnicos na área da reabilitação e conhecimento do edificado antigo e também a realização de conferências e debates temáticos. A APRUPP foi uma das 13 entidades selecionadas pela UNESCO, dentro do grupo Europa & América do Norte, para desenvolver a iniciativa World Heritage Volunteers que decorreu em outubro de 2022, no Porto, coordenando o consórcio constituído pelos parceiros Departamento Gallaecia da Universidade Portucalense, Centro da Terra, Município do Porto e European Heritage Volunteers, para além do apoio da Universidade de Aveiro (CICECO, DEMAC, DEC) e da Universidade do Porto (FEUP, FAUP), entre muitos outros apoios empresariais e de técnicos da área da reabilitação, estudantes de arquitetura e patrocinadores (https://aprupp.org/).
VJ – Qual é o caminho a seguir por parte da associação na defesa dos seus interesses?
AT – As associações portuguesas têm os seus âmbitos locais, regionais ou nacionais de ação, de defesa do património e da cultura, havendo um grupo de associações que em 2017 assinou um memorando criando o Fórum do Património, um grupo de ONG que foi crescendo nestes últimos anos. Cada associação define a metodologia que considera mais adequada para a defesa do interesse público. Tem-se, no entanto, verificado que a simples denúncia de casos de ações erróneas sobre o património edificado em geral (não apenas os edifícios classificados), incluindo a sua demolição, é uma forma insuficiente de defesa do património, pela morosidade de resposta por parte das entidades públicas e pela falta de atuação preventiva por parte destas. A participação pública prevista na lei para momentos cruciais de discussão dos instrumentos de planeamento urbano/gestão do território (PDM, Planos de urbanização, planos de pormenor) tem vindo a ser cerceada ou adulterada, já que a divulgação não é feita de forma ativa e a receção das comunicações do cidadão é em muitos casos centralizada para o email do presidente do Município, sem que haja um verdadeiro debate público em muitos casos. Este aspeto tem um impacto muito negativo nas possibilidades de defesa do património. Por este motivo, outras formas de ação estão a ser desenvolvidas que passam pela sensibilização pública, iniciativas de maior proximidade do cidadão e de definição de novas parcerias entre as ONG do património e cultura.
"Em Portugal a reabilitação urbana faz um uso excessivo de demolições mantendo apenas a fachada"
VJ – Tem contacto com a área da arquitetura e engenheira civil. Que papel essas áreas, em concreto, podem desempenhar no que toca à maior eficiência na construção e reabilitação urbana?
AT – A arquitetura e as engenharias em geral têm um papel fundamental para ultrapassar as insuficiências da Lei, nomeadamente quando os técnicos têm consolidado um conhecimento sobre o edificado antigo e as suas potencialidades e têm o conhecimento necessário e a capacidade para justificarem opções menos destrutivas e mais valorizadoras da autenticidade do património. No entanto, esta formação técnica e a experiência necessária de intervenção no património existente continua a ter um número insuficiente de técnicos, o que, associado a pressões de investidores, à falta de um verdadeiro planeamento da defesa do património edificado em grande parte dos municípios (que seja mais do que frases em preâmbulos de PDM), à falta de legislação que coloque a definição de “reabilitação” como algo não altamente destruidor, se conjugam como motivos de desvalorização das ações de reabilitação, passando a ser simplesmente construção e “reconstrução”. A maior eficiência na construção deveria estar em linha com a sustentabilidade ambiental e isso quer dizer menos produção de resíduos e produtos mais duráveis, para além de menores consumos energéticos e famílias menos dependentes de equipamentos para atingirem o conforto térmico ou dependentes de investimentos com elevados períodos de retorno financeiro. Ou seja, um conhecimento mais profundo dos materiais, uma indústria mais responsável pelo ciclo de vida do que coloca no mercado e uma aposta maior nos sistemas passivos da construção, o que deveria levar a uma aposta maior na arquitetura e na sua capacidade de resposta bioclimática, devendo a estratégia ser alicerçada em bons projetos de engenharia, importantes para se atingirem equilíbrios na intervenção no existente.
VJ – Como situa Portugal em matéria sobre reabilitação urbana e se no nosso caso é necessário adotar novos ideais e novas políticas?
AT – Em Portugal, a reabilitação urbana tem na generalidade como imagem de marca o “fachadismo”, um uso excessivo de demolições mantendo apenas a fachada, com o consequente aumento de produção de resíduos e uma perda de património edificado não avaliada, nem monitorizada pelas entidades públicas. Em consequência do ponto de vista da salvaguarda dos valores culturais e patrimoniais, as ações de reabilitação urbana precisam urgentemente de novas orientações estratégicas, apoiadas por legislação e regulamentos municipais mais assertivos e compatibilizados com as orientações internacionais de valorização do património edificado (não exclusivamente classificado). São necessárias novas políticas que consigam conjugar a natural ligação entre cultura e património e valorizar mais a autenticidade do edificado antigo. Alicerçar o desenvolvimento económico, turístico e imobiliário em níveis aceitáveis de autenticidade e integridade do Património edificado, previamente definidos, é fundamental para que a regeneração/revitalização urbana continue a ser um recurso sustentável / reutilizavel para as gerações futuras e não apenas para o mercado de consumo internacional. Este objetivo exige alterações ao nível da legislação da construção/reabilitação e ligada à gestão do território, bem como à definição de uma entidade supramunicipal que aprecie, acompanhe e promova a interoperabilidade de ações e medidas entre diversos munícipios na área da preservação e valorização do Património edificado (não classificado, já que para o classificado existe a DGPC – Direção-Geral do Património Cultural), como por exemplo existe para as Reservas Ecológica e Agrícola, com as suas questões específicas. Isto promoveria uma visão diferente sobre o edificado antigo não classificado, mas de interesse público, ultrapassando-se as vagas intenções que ficam regularmente apenas restritas aos preâmbulos dos Planos Diretores Municipais, não havendo ninguém que acompanhe a aplicabilidade e os resultados das mesmas.
VJ – Considera a legislação atual aplicada a esta temática suficiente? Caso contrário, que lacunas legislativas identifica?
AT – A legislação portuguesa teve recentemente uma alteração relevante na área da reabilitação do edificado residencial com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 95/2019, de 18 de julho, que teve associado diversas portarias. De destacar ainda as alterações importantes ao nível da avaliação do edificado em termos de segurança estrutural do ponto de vista sísmico, que veio ao encontro de alertas da comunidade científica, com especial relevância para áreas sísmicas, como por exemplo a capital do país. Esta legislação teve ainda como base estratégica 3 princípios que deveriam ter ficado como os motores das intervenções de reabilitação. Contudo, a falta de continuidade das orientações enunciadas e das alterações legislativas necessárias e a manutenção de “alçapões” da lei têm desvirtuado a aplicação da mesma e colocado o ónus na capacidade de os técnicos argumentarem de forma sustentável as razões pelas quais não se devem aplicar determinados princípios previstos na lei a edifícios antigos existentes, em fase de licenciamento. Ora esta circunstância seria desnecessária se a lei estivesse mais próxima do conhecimento científico, entendendo que os princípios da construção nova não são aplicáveis à construção antiga. Metaforicamente estamos a avaliar um médico usando os parâmetros de avaliação para um engenheiro, ora, por melhor que seja o médico, este irá sempre falhar como engenheiro. O mesmo se passa entre a construção antiga e a construção nova, os materiais têm características diferentes e os princípios de construção são igualmente diferentes, pelo que a intervenção deveria refletir esse conhecimento base. Existem diversas alterações ao nível da legislação, podendo começar-se pela definição na lei do que é “reabilitação”, distinguindo-a totalmente do que é “reconstrução”, com as devidas consequências em termos fiscais e de apoios financeiros, incluindo Europeus. Esta é uma questão de princípio e também um contributo de natureza ética.
VJ – Na sua opinião, a situação pandémica trouxe repercussões no que toca à reabilitação urbana?
AT – No que concerne à quantidade de intervenções, não se observaram grandes constrangimentos, apesar de as empresas de construção se terem confrontado com uma gestão diferente dos recursos humanos. Contudo, a situação pandémica teve repercussões em termos da produção de materiais e equipamentos, consequentemente, em termos de preços, o que tem vindo a onerar em contínuo as obras, tornando difícil a gestão das mesmas.
Há, contudo, a destacar uma sensível menor fiscalização das intervenções e da promoção de participação pública no que concerne à defesa do património. Demoliu-se muito, com menor contestação pública, o que agora se encontra em processo de consciencialização dos efeitos.
VJ – Numa altura em que a sociedade, cada vez mais, se preocupa com um desenvolvimento sustentável, em que medida o setor da reabilitação urbana e proteção do território pode contribuir para alcançar esse mesmo objetivo?
AT – O desenvolvimento sustentável exige a promoção do binómio menor produção de resíduos & maior durabilidade dos edifícios. Para se atingir este objetivo, são necessárias orientações políticas e legislativas claras para a restrição de demolições indiscriminadas, a obrigatoriedade de avaliações credíveis dos edifícios antes de qualquer projeto, a definição de funções compatíveis com as características do edifício existente. Simultaneamente, mais do que o foco na reciclagem dos materiais, deverá apostar-se na garantia de maior durabilidade dos materiais e garantias de maior compatibilidade. Sendo esta promoção acompanhada de medidas que obriguem à não descontinuidade em curto espaço de tempo dos produtos industriais e dos equipamentos. De que serve entrar na Lei a garantia de obras por 10 anos, quando a mesma lei da construção impele ao uso de equipamentos (nomeadamente na área da energia/térmica) que não acompanham essa mesma garantia? E o que dizer de prazos de construção que, para se garantirem os financiamentos, quase obrigam ao recurso de materiais mais perecíveis ou ao não cumprimento das boas regras de construção, a que os técnicos projetistas têm por lei de assumir que serão seguidas?
Outro aspeto é a promoção de medidas dirigidas à responsabilidade sobre o destino a dar aos materiais e equipamentos em fim de ciclo de vida pelas indústrias respetivas, que pode contribuir para um maior entendimento de um desenvolvimento sustentável, com efeitos benéficos para o meio ambiente e qualidade de vida. Todos os dias temos a entrada de novos materiais de construção no mercado, cada vez mais complexos e com custos de reciclagem onerosos, o que acaba por aumentar a pressão para um aumento exponencial de aterros e modos de destruição, com supostas medidas compensadoras das populações que os têm de acolher.
VJ – O Instrumento Financeiro de Reabilitação e Revitalização Urbana 2020 (IFRRU 2020) que mantém o seu funcionamento até 2023 é o maior programa de incentivo à reabilitação urbana lançado em Portugal. Como avalia até agora o sucesso deste plano?
AT – Os instrumentos de apoio financeiro à reabilitação deviam ser mais acessíveis a privados, com menos ónus de longo prazo, contribuindo mais para as dinâmicas do arrendamento.
VJ – Através da introdução do Plano de Recuperação e Resiliência, considera essencial alocar parte das suas verbas em medidas e planos semelhantes, que se foquem em revitalizar o mercado da construção e reabilitação urbana?
AT – São fundamentais mais medidas de apoio a uma reabilitação qualificada, em detrimento de apoios para reconstruções. Isto quer dizer que, previamente a qualquer apoio financeiro, se deve exigir a apresentação de um conhecimento dos sistemas construtivos tradicionais presentes no edificado a intervir e a definição de funções compatíveis. De outra forma, sem qualquer orientação estratégica, iremos continuar a afastar-nos de metas em termos da redução da produção de resíduos e a perder de forma irreversível património edificado. Uma especial atenção deve ser dada às medidas da chamada “eficiência energética”, para que não se transforme o edificado de forma acrítica e tabelada, no sentido da criação de dependências futuras de equipamentos e sem o retorno financeiro esperado ao nível da redução de custos de consumos energéticos, ao que se acrescenta o ónus da manutenção especializada dos mesmos, não acessível a todas as famílias. Ou seja, uma aposta na arquitetura para aumento de medidas de natureza passiva pode atingir de forma abrangente mais famílias portuguesas e com menos consequências negativas para o património e mais enquadradas na realidade portuguesa. Não deveremos aplicar medidas que cientificamente está provado que se aplicam a países nórdicos europeus com características climatéricas muito diferentes das nossas. O combate à pobreza energética faz-se também pelo controlo dos custos da energia e não exclusivamente pela obrigatoriedade de medidas de transformação radical do edificado.