Banco Português de Fomento de ve seguir exemplo irlandês;

José Silva Peneda lamenta que financiamento chegue apenas a 0,6% das empresas
Banco Português de Fomento de ve seguir exemplo irlandês
José Silva Peneda defende as instalações do Banco de Portugal para a sede do Banco Português de Fomento no Porto.
O projeto inicial de criar o Banco de Fomento, que tinha o aval do Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, e do ministro das Finanças, Carlos Gaspar, e apoio da Chanceler Angela Merkel, nunca chegou a ver a luz do dia. Ao contrário da Irlanda, que seguiu o modelo com sucesso, em Portugal decidiu-se criar um novo Banco de Fomento (BPF), sem intervenção nas decisões de financiamento do banco alemão KFW ou do BEI.
“Quando se trata de financiamento ao setor privado, a concentração de grande parte das decisões e da sua preparação no Governo e nos gabinetes dos seus membros aumenta o risco de falta de transparência no processe decisório”, alerta José Silva Peneda, ex-ministro de Emprego e da Segurança Social e atual presidente do CA da UTAD, que liderou o projeto inicial de criação do Banco de Fomento.

Vida Económica – Como surgiu a ideia de criar um Banco de Fomento?
José Silva Peneda - A ideia surgiu no verão de 2013, quando percebi que haveria consequências devido ao facto de a União Europeia ter adotado a orientação de privilegiar a modalidade de empréstimos, em vez de subsídios a fundo perdido, na outorga de verbas aos Estados Membros beneficiários de apoios dos fundos estruturais. Essa orientação pareceu-me muito correta porque permitiria que o dinheiro investido regressasse, a prazo, à origem, pelo menos em parte, e poder-se-ia criar uma espécie de carrossel dos montantes a investir. Decidi abordar o Governador do Banco de Portugal, Dr. Carlos Costa, com quem tenho relações de amizade pessoal, e falei-lhe na eventualidade de ser criada no país uma instituição que replicasse internamente aquela orientação europeia e funcionasse como interlocutor único perante a União Europeia para efeitos de investimentos aprovados com base em instrumentos de crédito da União. Assim nasceu a ideia do Banco de Fomento. O Dr. Carlos Costa mostrou uma grande aceitação da ideia, mas como o Banco de Portugal teria de emitir uma licença para que a nova instituição pudesse operar sugeriu que a proposta deveria ter origem no Governo. No dia seguinte, nos princípios de agosto, desloquei-me ao Banco de Portugal para expor a ideia ao ministro Carlos Gaspar. Se o Governador do Banco Central tinha reagido bem à minha proposta, o ministro das Finanças ficou muito entusiasmado e logo ali chamou alguns colaboradores e formou um grupo de trabalho de que tive a honra de fazer parte. Esse grupo trabalhou muito e bem. Ficaram preparados relatórios sobre a viabilidade da iniciativa, textos legislativos e cronograma das medidas e ações a tomar. Nesse processo aconteceu um episódio curioso que passo a contar: a Chanceler Merkel por essa altura visitou Portugal e, sem que ninguém lhe tivesse perguntado, ofereceu a colaboração do grande banco público da Alemanha, o KFW,  que nasceu no pós-guerra com o objetivo de ser o grande veículo financeiro da reconstrução alemã, para auxiliar na constituição do Banco de Fomento em Portugal. Quando vi essa declaração na TV, enviei de imediato uma mensagem a Carlos Gaspar felicitando-o pelo trabalho desenvolvido porque sei bem que uma declaração destas da Chanceler alemã não aconteceu por acaso. Quem tem experiências destas andanças sabe que há sempre por trás deste tipo de declarações um aturado trabalho de bastidores. A resposta do ministro foi esta: “Estou em pleno ‘Ecofin’ mas cada vez estou mais convencido das enormes potencialidades do projeto”. Com a saída de Carlos Gaspar do Governo, o projeto morreu.

VE – Que envolvimento tiveram ou era esperado terem o KFW e o BEI no projeto inicial?
JSP - Da parte do KFW, a disponibilidade para colaborar era total, como decorre da resposta anterior. Quanto ao BEI,  houve conversas, mas o facto de o Governador do Banco de Portugal ter sido membro do seu Conselho de Administração seguramente que facilitaria o processo.

VE – Esse projeto não vingou em Portugal por decisão meramente política?
JSP - Não sei dizer se houve uma decisão ostensiva de travar o processo. A única certeza que tenho é que a sucessora de Carlos Gaspar não mostrou o mínimo interesse pelo tema.

Irlanda concretizou ideia nascida em Portugal

VE – Por sua vez, a Irlanda concretizou a ideia nascida em Portugal. Como funciona o sistema com os irlandeses?
JSP - Funciona muito bem. A este respeito deu-se um caso curioso. Quando fui exercer funções como conselheiro do Presidente Jean Claude Juncker, fui surpreendido com um artigo que dava conta da experiência irlandesa e constatei, com surpresa, que se tratava exatamente da mesma ideia que tínhamos tido em Portugal, mas com uma diferença, eles conseguiram concretizá-la e nós não. Na figura anexa (chamo a atenção para a nota anexa) pode ver-se o BEI e o KFW como fundadores da instituição que foi designada “Strategic Bank Corporation of Ireland (SBCI)”. Este banco na Irlanda tem como principal missão disponibilizar crédito a pequenas e médias empresas, fazendo-o através de bancos de retalho comerciais e de outras instituições financeiras, sendo certo que cabe ao SBCI a definição das as regras de funcionamento do sistema.
VE – Como avalia a solução adotada em Portugal, inclusive quanto aos seus efeitos práticos?
JSP - Foi uma solução pífia. A prova é que se voltou à estaca zero e voltou-se a falar num novo Banco de Fomento. Em Portugal funcionam mais de 450 mil empresas e os últimos dados de que disponho é que com a intervenção da instituição criada foram apoiadas apenas 0,6% desse universo.

VE – O que se ganharia com o envolvimento do KFW e do BEI?
JSP - Desde logo o país iria beneficiar de uma longa experiência de muitas décadas de instituições de elevada craveira no que respeita ao financiamento de grandes projetos de investimento. Em segundo lugar, o envolvimento destas instituições internacionais contribuiria para que os projetos a financiar fossem analisados na base de critérios exclusivamente profissionais.

VE – Acha que com o sistema criado há maior risco de favorecimento político e de as decisões serem pouco claras e transparentes?
JSP - A concessão de fundos comunitários envolve sempre riscos e não vale a pena disfarçar que a tentação para o favorecimento político e para a falta de transparência é grande. Por isso advogo que quanto maior for o envolvimento de instituições como o BEI e o KFW na decisão de financiamento de projetos privados, a intervenção do poder político será muito mitigada. No nosso país não há membro do Governo, seja ministro ou secretário de Estado, que não queira ver o seu nome associado a um projeto de investimento. Basta ver o que tem acontecido com o Alqueva. Já perdi a conta de quantos se declararam autores do projeto quando a verdade é só uma, a decisão do Alqueva deve-se fundamentalmente a duas pessoas, ao Professor Luís Valente de Oliveira, na altura ministro do Planeamento e da Administração do Território, e ao então Primeiro-Ministro, Professor Aníbal Cavaco e Silva. Quando se trata de financiamento ao setor privado, a concentração de grande parte das decisões e da sua preparação no Governo e nos gabinetes dos seus membros aumenta o risco de falta de transparência no processe decisório.

Cinco recomendações

VE - Que recomendações faz para que o Banco de Fomento consiga desempenhar em pleno a missão para que foi criado?
JSP - Faria cinco recomendações: a primeira, no sentido de nos órgãos decisores do Banco de Fomento terem assento, como membros não executivos, individualidades de outras nacionalidades europeias. Este é um fator que pode contribuir para que a governação seja mais clara e transparente.
A segunda recomendação tem a ver com a realidade do nosso sistema financeiro. que continua a definir as garantias dos créditos que concede na base de garantias reais, nomeadamente na terra e no que lá está construído. O Banco de Fomento teria aqui um papel essencial, qual seja o de se centrar na melhoria do acesso a financiamento de projetos de investigação e desenvolvimento, investimento social e formação, que aumentem a competitividade das empresas, que não são, na sua larga maioria, suscetíveis de apresentar as chamadas garantias tradicionais. 
A terceira recomendação tem a ver com o encorajamento que o Banco de Fomento deve proporcionar aos investimentos no setor público, nomeadamente na área da formação de quadros de elevado potencial. Este ponto é essencial porque a administração pública nos últimos anos perdeu muitos quadros de elevada qualidade que não foram substituídos por outros de nível idêntico. Sem uma boa administração pública não será possível aproveitar a oportunidade que nos vai ser facultada através do acesso a tão vultuosos meios financeiros provenientes da União Europeia. 
A quarta recomendação tem a ver com a relação do Banco de Fomento com a tutela. É claramente preferível que o Banco responda apenas a um ministro e não, com já aconteceu no passado, ter de responder aos ministérios da Economia, Finanças e Planeamento. Os melhores modelos adotados na Europa eliminam a duplicação e sobreposição entre agências que foram nascendo em determinados contextos políticos e históricos, o que leva a que muitas vezes respondessem perante ministérios diferentes e acabavam por chocar e a lutar umas contra outras, em vez de cumprir as tarefas para as quais foram criadas. 
A quinta recomendação tem a ver com a localização das instalações do Banco de Fomento, seguramente e bem no Porto, mas na Praça da Liberdade, nas instalações da delegação do Banco de Portugal que hoje não deve ter nenhuma função de relevo. Seria uma localização mais de acordo com a ambição que o Banco de Fomento tem de assumir também perante os agentes económicos e a opinião pública.
VIRGÍLIO FERREIRA virgilio@vidaeconomica.pt, 07/01/2021
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